sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #145
Sobre esperanças frustradas e gerações desiludidas
Crescer e se tornar sombrio
“Não é só que as pessoas envelheceram, as pessoas ficaram sombrias.”
Sublinhei essa frase de Aos meus amigos, romance da Maria Adelaide Amaral que ganhou nova edição este ano pela Instante — originalmente, foi publicado em 1992. Durante um dia, o grupo de amigos de Lena, Bia, Lúcia, Beny, Raquel, Caio, Adonis, Pedro, Pingo, Ivan e Tito se reencontram depois de anos sem reunir a turma toda. Mas esse não é um reencontro feliz. O motivo de estarem todos juntos no mesmo lugar é Leo, que se suicidou.
É no velório de Leo que essas personagens se atualizam sobre a vida dos amigos de longa data, que viveram com furor as décadas de 1970 e 1980. Foram jovens idealistas, politicamente engajados contra a ditadura militar, afoitos para experimentar uma vida diferente da tradicional, com ambições de serem autores publicados e admirados, terem suas ideias revolucionárias difundidas e acatadas, uma geração que tinha esperança de construir um Brasil melhor. Eles viveram romances, desilusões, parcerias e brigas, e estavam sempre juntos por terem o mesmo ideal político ou artístico.
Mas no início dos anos 1990, beirando aos 50/60 anos de idade, poucos guardaram essas características da juventude. A vida adulta, depois dos filhos, das mudanças políticas (como a queda do Muro de Berlin), dos fracassos profissionais e suas obrigações, foi um balde de água fria para esses jovens idealistas. Nas conversas entre eles, é possível sentir um amargor melancólico, o ressentimento por não terem se tornado aquilo que idealizavam na faculdade.
Após o velório de Leo, quando parte desses amigos vai até a sua casa em busca de documentos e de um possível romance secreto, Lena e Bia olham fotos desses passado e se espantam ao constatar como mudaram. Uma comenta com a outra como elas pareciam felizes, despreocupadas:
“— Eu tenho tanta pena de nós, Lena! Quando olho pra gente nestas fotos, aquilo que a gente era, no que a gente acreditava e no que se tornou, Lena. Um bando de gente desesperançada.”
E aí, logo depois, Bia arremata com a frase que abre esse texto: “Não é só que as pessoas envelheceram, as pessoas ficaram sombrias".
Essa frase está reverberando aqui desde então. Para mim, ela sintetiza o que é “crescer", ela explica a minha desilusão atual com a vida.
Claro, há muitas diferenças entre a minha geração e a geração de Maria Adelaide Amaral. A minha nunca foi ameaçada por uma ditadura, eu nasci assim que ela acabou. Não precisei “lutar” pelos meus direitos, porque vim ao mundo com eles garantidos, enquanto essas personagens (inspiradas, algumas, em pessoas reais) tiveram um papel importante na luta para a redemocratização do Brasil. Era uma juventude que sonhava e idealizava porque eles tinham algo a combater. Mas depois que o mundo mudou e o sonho comunista acabou, restou a desilusão. Quando Tito, Ivan e Pingo relembram a militância, fazem isso com pesar por se verem, hoje, como homens vendidos ao sistema: trabalhadores de escritório ou escritores frustrados por não serem mais os “heróis” que julgavam ser antes. O futuro que eles visualizavam não se concretizou. Sua participação política foi esquecida.
Assim como o futuro que eu imaginava não se concretizou. Eu cresci num mundo que me prometia maravilhas, uma vida confortável e tranquila. A televisão exaltava famílias felizes viajando para a Disney com o lucro de seu árduo trabalho. As propagandas de brinquedos infantis me educaram a acreditar no discurso marketeiro de que eu preciso ter essa coisa para me sentir feliz. O maior conto de fadas da minha geração foi acreditar que um diploma nos faria subir um degrau na escada da classe social e nós receberíamos um salário de acordo com nossa dedicação aos estudos. A internet prometeu um mundo sem fronteiras e entregou, junto com isso, um mundo sem leis que tirou nossa saúde mental e criou toda uma nova gama de problemas que, sinceramente, ninguém sabe resolver sem desligar o fio que conecta tudo.
Quando lembro do que eu queria para minha vida adulta — apesar de nunca gostar da ideia de crescer, de ter responsabilidades e trabalhar —, eu enxergava algo próximo ao que meus pais tinham, mas com uma pitada maior de luxo. Com a idade que estou prestes a fazer, 35, eles já tinham uma casa construída, carro, uma filha, empregos estáveis (mas que não pagavam bem), enfim, tudo o que, naquela época, era o símbolo do sucesso. Eu imaginava ter mais sucesso do que eles, eu sentia que devia isso a eles. Fui uma entusiasta do digital desde cedo por ter entendido o potencial que ele tinha de abrir o mundo pra mim no meio daquele lugar que parecia ser o fim do mundo. O futuro, por mais amedrontador que fosse, era animador. Venderam pra gente a ideia de que todos nós viveríamos plenamente e trabalharíamos menos se a gente estudasse e se dedicasse. Não é bem isso o que aconteceu, né?
Envelheci, e como as personagens de Aos meus amigos, guardadas as suas proporções, também fiquei sombria. Os protagonistas de Maria Adelaide são frustrados com os caminhos que tomaram na vida porque se viram repetindo os mesmos padrões de comportamento de seus pais, ou porque entenderam que esse mundo não comporta suas ideias revolucionárias e você é obrigado a se tornar mais uma engrenagem na maquininha do capitalismo se quiser sobreviver. Porque perceberam que aquela chama inquieta da juventude não existe mais agora que você está na vida adulta e enxerga as coisas como elas são. Talvez seja cedo para eu me considerar derrotada pelo sistema, ainda há muitos anos para se viver, mas a sensação é essa: eu esperava tanto da vida adulta, e agora não consigo ter uma perspectiva de que o mundo que eu imaginava vai se concretizar.
A internet que me deixava eufórica com suas possibilidades e me garantiu tantas novas visões e ideias hoje é o que mais me tira a paciência. É onde eu trabalho e convivo com pessoas, mas não consigo olhar para os próximos 5 anos com expectativas positivas porque os sinais que temos agora são de puro caos. É a democracia ameaçada, é a desinformação, é a futilidade, é a maneira como todos nós viramos um produto para grandes empresas de tecnologia. Olho com muita saudade para a minha adolescência porque lá eu tinha esperança e alegria com essa novidade que prometia mudar o mundo para melhor. Só que ele não está melhor. A internet pode ter ajudado a democratizar muitas coisas, deu sim possibilidade para quem, como eu, via os limites geográficos como uma barreira para o conhecimento e a experiência de vida. Mas junto com essas promessas, vieram novos problemas que não sabemos como resolver hoje. Novos problemas que ameaçam esse futuro que idealizei e que a minha geração abraçou.
Tem gente que me acha pessimista, tem gente que me acha realista, e eu acredito que seja uma mistura das duas coisas. Acho ingênuo olhar para as novidades sem se questionar que problemas elas podem levantar. E a gente fez muito isso, abraçou cada nova tecnologia acreditando que ela transformaria a sociedade em uma coisa melhor, mais avançada, mais justa, mais igualitária, quando na verdade agora vivemos uma espécie de “teocracia do algoritmo", onde não temos controle algum sobre o que vamos ver e quem vai ver a gente.
Claro que parte do que eu imaginava para a minha vida se concretizou. Afinal, saí de Santa Catarina, moro agora num lugar bem localizado em São Paulo, tenho uma vida confortável se for comparar com a maioria da população do Brasil. Se eu fosse uma pessoa extremamente egoísta, eu não estaria escrevendo esse texto. Mas porra, fui ensinada a me importar com as pessoas, e enquanto a maioria estiver na merda, também vou me sentir na merda. E agora, sinto que logo posso perder esse conforto porque esse mundo não se importa com nosso bem-estar. Quer apenas nosso dinheiro, nossa energia e nosso tempo, custe o que custar.
Me encontro frustrada. Comigo, com o mundo, com as pessoas que seguem acreditando em campanhas publicitárias (eu inclusa), que acham que dar a vida pelo emprego é o segredo do sucesso, que não têm curiosidade em aprender como o universo funciona, que não pensa nas consequências a longo prazo, que não olha para além da ponta do próprio nariz para perceber que o futuro, do jeito que as coisas estão agora, mais provavelmente vai a transformar em uma refugiada climática ou política do que numa pessoa de sucesso. Não é que eu envelheci e meu corpo começou a dar sinais de cansaço. É que a realidade que enxergo agora me deixou sombria como as personagens de Aos meus amigos: o que me prometeram não existe. E agora não sei o que querer, porque para o mundo ideal se concretizar, teríamos que começar do zero. E, por enquanto, não tem nenhum meteoro ameaçando cair aqui.
Vamos às dicas
Desculpa, gente, mas estamos aqui novamente com indicação de kpop. Acontece que RM, que já tinha indicado aqui antes, lançou o álbum novo, Right Place, Wrong Person, e nós, pessoas tristes, fomos contempladas com canções bem diferentes do que o BTS entrega. Tem uma vibe mais indiezera, até meio shoegaze, e letras mais introspectivas. Aí, enquanto procurava os clipes novos para ver, caí nesse vídeo em que RM e Jimin reagem às músicas, e aí dá pra entender muito bem o que ele quis fazer nesse álbum: encontrar uma nova voz pro RM sem o BTS. Acho foda quando ele fala sobre a pressão que sente sendo líder da maior banda da Coreia do Sul. De sentir que pode ser a pessoa certa na posição errada, que outros poderiam ser melhores do que ele, de não "merecer” esse lugar. Achei bem daora essa conversa dos dois.
Comecei a ver na Netflix a série Dançando com o diabo, mais um documentário sobre seita. Já tinha visto algum canal do YouTube contar essa treta que é bem recente, mas tem novidades no desenrolar do caso. O negócio é: duas irmãs, influencers de dancinha de TikTok, eram bem famosinhas fazendo suas coreôs, até que uma delas acaba entrando para um grupo de dança religioso e corta todo o contato com a família. Em 2022, os pais e a irmã postaram um vídeo preocupado falando que queriam entrar em contato com ela, e foi exposto que esse grupo/igreja, comandada por um pastor trambiqueiro, nada mais é do que mais uma seita que promete dinheiro e sucesso para seus membros. Só mais um dia normal no mundinho da internet.
Pronto, acabou. Até semana que vem!
Beijos e tchau.
Acho que tudo que eu tenho lido de alguém da nossa geração ultimamente tem sido algo nesse sentido. Parece que para nós os anos 2000 foram a década onde o futuro seria brilhante, como você mesmo disse no texto. Aí chegam os anos 2010, e vemos que nem tudo é tão incrível, mas ainda era válido lutar por algo melhor, gritar "fora Temer" e tudo. Parece que agora na década de 20, o que sobrou foi pura e simples melancolia. Espero apenas que isso não nos amargure muito, não gostaria de chegar aos 60 sem reconhecer a pessoa que foi aos 20, 30 anos. Se antes a esperança era de um futuro melhor para todos, hoje a melhor expectativa que tenho é não me perder na estrada do desalento.
Eu super te entendo, Taize. Tem horas que me acho pessimista, outras realista, outras domesticada ao capitalismo. Mas eu tenho uns mecanismos para não ser engolida pela desilusão e tem dado certo. Um compromisso comigo mesma...