Que loucura é escrever
Rosa Montero foi minha companhia na virada do ano. Claro que ela não estava aqui, pois tem mais o que fazer lá na Espanha. Passei os últimos dias de 2023 e o primeiro dia de 2024 lendo O perigo de estar lúcida (Todavia, tradução de Mariana Sanchez), seu livro mais recente lançado aqui. Este é mais um livro de não ficção da autora — que, ela confessa, tem um tiquinho de ficção sim —, onde explora a relação entre a criatividade e a saúde mental. Foi por isso mesmo que escolhi ler, porque é do meu feitio fugir de leituras leves e cair de cabeça naquelas que são um pouco mais… desafiadoras. Não porque é difícil de ler, mas porque é fácil me enxergar no que Montero está dizendo, e quando me enxergo em alguma coisa, encaro os meus problemas. Bem leve para a virada, né?
Porque a saúde tá nada mental. Nesse último ano, por mais que eu tenha concluído ele com sucesso, senti que fui afundando um pouco mais na minha apatia pelo mundo. Me convencer a realizar as tarefas mais cotidianas é sempre uma pequena luta. Muitas vezes adiei o que tinha para fazer para ficar deitada no sofá fazendo nada de produtivo. Bem, eu não gosto de ser produtiva sempre, e não acho que devemos ser. Mas quando até ir limpar a caixa de areia dos gatos parece um trabalho hercúleo, algo não está certo. E 2023 também foi o ano em que decidi que quero escrever um livro, quero experimentar a ficção, e passei todos os seus 12 meses apenas namorando a ideia sem efetivamente sentar e escrever. Então tem muita coisa que tenho que combater aqui dentro da minha cabeça para finalmente botar a mão na massa e fazer algo.
Por isso escolhi ler O perigo de estar lúcida. Ele é um documento que fala sobre a criação literária e sua natureza solitária, que pode levar os escritores à loucura. Ou será que é a loucura que nos leva para a literatura? Rosa Montero não dá essa resposta, mas mostra como as duas coisas estão muito bem ligadas quando se olha para quem escreveu e o que aconteceu com suas vidas. O suicídio é um tema importante no livro, já que Montero resgata várias histórias de escritores e escritoras que acabaram com a própria vida, como Sylvia Plath, Virginia Woolf, Yukio Mishima e Ernest Hemingway, só para citar os mais famosos. Percebe-se que há um medo aí na autora de, quem sabe, ela também sucumbir à “tempestade perfeita” que leva alguém ao suicídio. Uma preocupação que, sinceramente, eu também tenho.
Existe em mim uma sensação de que eu sei como eu vou morrer, e algo me diz que o mais provável é que eu decida a hora em que isso vai acontecer. E por mais que isso soe horrível, de certa forma me tranquiliza saber que, quando eu não tiver mais meios de me manter viva e saudável sozinha, existe essa saída. Na verdade, espero que até lá eu possa morrer pela eutanásia, e não pelo suicídio. Mas vai saber como estará essa discussão daqui a uns 50 anos…
Enfim, muita gente pode olhar pra essa leitura e pensar que ela não faria bem para a minha saúde mental, mas foi justamente o contrário. Primeiro, porque você tem um vislumbre de como funciona o processo criativo de Rosa Montero, como ela explica essa necessidade que surge não sei de onde para escrever histórias, e isso me conforta. Ou apenas escrever, seja um diário, uma coluna no jornal, um artigo ou uma história mirabolante. Existe dentro dela — e dentro da maioria dos escritores, provavelmente —, esse impulso de transformar o caos do cérebro em palavras ordenadas. E como ela mostra, muitos nomes da literatura mundial afirmaram que escrevem para sobreviver. Não pelo dinheiro — porque ganhar dinheiro com isso é como ganhar na Mega Sena —, mas pela própria necessidade de esvaziar o fluxo de pensamentos que enche suas cabeças. O medo é de que, se não escreverem, não aguentarão essa marimba que é viver.
Sinto que padeço do mesmo desejo. Tenho vontade de colocar pra fora o que fica maturando aqui dentro. Só que, ao mesmo tempo, há essa dificuldade de botar a bunda na cadeira e digitar sem distrações, deixando a mente apenas ir. E eu sei de onde vem isso. É o medo do fracasso. O medo de ninguém gostar do que escrevi, ou pior, ninguém entender o que eu escrevi. Uma coisa é imaginar frases e situações na minha cabeça. Outra coisa é ver isso escrito e achar bom — como Elena Ferrante falou em As margens e o ditado, a gente fica sempre insatisfeito com o que escreveu e com a sensação de não ter captado aquilo que imaginamos, e a mão não acompanha o ditado da mente.
Dentre várias personagens que Rosa Montero usa como exemplo para esse laço forte entre a loucura e a criatividade — além dela mesma —, uma das principais é Sylvia Plath, cuja história já é bem conhecida a ponto da gente entender a quem o pessoal se refere quando fala de “colocar a cabeça no forno". E, óbvio, como uma mulher que na infância tinha pensamentos de grandiosidade, eu enxergo muitos paralelos entre a vida dela e a minha, pelo menos no que diz respeito a expectativas com a escrita.
Segundo Montero, Plath tinha esse desejo enorme de ser reconhecida, fantasiava com seu sucesso literário, e por isso mesmo passou por grandes frustrações ao ver seus poemas e textos sendo recusados aqui e ali. E eu tenho a mesma coisa. Sabe quando você fica imaginando que vai ganhar um prêmio ou ser exaltada? Por mais que eu tente refrear esses pensamentos, isso sempre me acontece. Eu nem escrevi o livro ainda, mas fico imaginando as resenhas elogiosas que poderiam escrever sobre ele. Ô ego inflado, não? E quando tento voltar para a realidade, fico desanimada. Nada disso vai acontecer. Por isso mesmo a ideia do fracasso me paraliza. Se eu não fizer nada, nada será criticado, e assim me protejo. Que jeito burro de pensar, mas estou presa nisso.
E tem outra coisinha importante nesse cálculo entre saúde mental e escrita que é a necessidade de ter uma vida intensa. Eu nunca me considerei uma pessoa “intensa", muito para evitar a frustração, mas eu vi razão no que ela escreve. Segundo Rosa Montero, muitos escritores que se mataram tinham esse impulso de viver coisas grandiosas porque a vida cotidiana não bastava. Como ela diz aqui:
“[…] E assim, Camus diz que vivemos mergulhados na nossa rotina; que todo dia levantamos, nos vestimos, tomamos o café da manhã, trabalhamos, voltamos para casa, jantamos, dormimos, começamos de novo. Até que um dia despertamos e deixamos de ver sentido naquilo que fazemos. Não se esqueça da terrível frase já citada de Viginia Woolf: ‘Às vezes o sentimento de total inutilidade da minha vida ressoa como um trovão dentro de mim'. É essa mesma vertigem, esse mesmo vazio. Se não houver uma crença religiosa a que se agarrar, a existência, olhando bem, é um absurdo. E então você se pergunta: por que continuar com tudo isso?”
Quantos dias eu não levantei já cansada de ter que repetir as mesmas coisas do dia seguinte? Quantas vezes olhei para o que eu tinha para fazer e não enxerguei importância alguma nisso? Quantas vezes desejei estar em qualquer outro lugar só para fazer algo diferente do que eu já vivo todos os dias? Quantas vezes não olhei para o mundo de fora e só vi falhas que nunca serão corrigidas e, por isso, perdi o ânimo de fazer qualquer coisa? Quantas vezes encontrei uma solução para minha tristeza, mas ela me deixou sem dinheiro? Ou pior, encontrei a solução, mas não pude concretizá-la justamente por não ter meios de fazer isso? É uma luta diária sobreviver quando não temos algo concreto a nos agarrar, realmente, e assim como Montero, eu não tenho uma religião. Talvez a criatividade parta dessa vontade de mudar, de viver um dia diferente, e por isso criamos histórias para satisfazermos esses desejos. Mas viver também é importante, sem a vida não há sobre o que escrever.
O que me pega, porém, é que viver exige recursos. O que me anima na vida é esse universo maravilhoso em que vivemos, cheio de coisas lindas e incríveis para ver, e que eu desejo realmente ver um dia. Mas vou conseguir? Adianta estar aqui trabalhando diariamente sem poder viver essas experiências? Então concordo demais com Rosa Montero quando ela diz que queremos intensidade nas nossas vidas. Seja na paixão ou na maneira com que andamos pelo mundo. E essa falta de intensidade, a falta de olhar para algo com maravilhamento, transforma a minha vida em uma coisa sem gosto e sem cor. A literatura foi um jeito de entrar em contato com isso. Mas já chegou no ponto em que só ela não é o suficiente. E chegou num ponto em que eu preciso urgentemente de terapia, porque sozinha tá ficando cada vez mais difícil segurar as pontas.
Então talvez tenha chegado a hora de escrever mesmo. Escrever para sobreviver. “Sempre pensei que a vida é uma luta constante contra o caos, isto é, contra a maldição da entropia", escreve Montero. E é isso, né? Estou aqui escrevendo para botar ordem nos pensamentos que tive enquanto lia O perigo de estar lúcida. Escrevo aqui toda vez que sinto que tenho um tema para explorar, e é nas palavras que as coisas se organizam e passam a fazer sentido. Nelas encontro aquela força necessária para levantar todos os dias novamente, porque no meio de uma faxina na casa eu sei que pode surgir uma ideia que pode render um texto. Meu único consolo é que, no meio desse caos que é meu cérebro e minhas sinapses, algo bom pode sair, nem que seja bom só pra mim mesma.
Fica aqui a indicação de leitura leve para o seu início de 2024! Sério, esse livro me fez pensar em muita coisa — que eu não anotei na hora —, e por isso acho que não consegui falar sobre tudo o que ele tem a dizer. Deixei muita coisa de fora, mas sei que ele ainda vai render mais.
Bom ano novo para vocês! Fiquem com imagens do cão Batista sendo fofo.
A Rosa mora aqui em Portugal e pude ir ao lançamento do livro com a presença dela. Anotei algo que disse e me marcou: “Uno tiene que aprender a convivir com su maleta de oscuridad”. Tenho para mim que esse é o trabalho de uma vida toda, ainda bem que temos a escrita para ajudar. Bom ano por aí! ❤️
Não sei se vai mudar alguma coisa pra vc, mas eu me vejo em muitas coisas que você escreve e me conforta saber que há outra pessoa que compartilha das minhas opiniões/sentimentos. Continue escrevendo, por favor, estarei aguardando.