Minhas últimas leituras de 2024 foram meio que complementares. Dois livros de contos publicados pela mesma editora, mas um de uma autora japonesa que morreu em 1986, o outro de um autor brasileiro nascido em 1988 — se ele tivesse nascido em 1986, diria que seria até uma reencarnação. A escrita deles é bem diferente, claro, mas a sensação que essas duas leituras me deixaram no final é a mesma: é engraçado e assustador observar o colapso social.
Comecei com Tédio terminal, de Izumi Suzuki, que a DBA lançou ano passado com tradução de Andrei Cunha, Rita Kohl e Eunice Suenaga. Suzuki escreveu sua obra entre as décadas de 1970 e 1980, fato que eu só fui me atentar depois de ter terminado de ler o livro, de tão atual que me pareceu. “Um mundo de mulheres com mulheres", o primeiro conto, eu comecei a ler bem quando saiu aquela newsletter da Marie sobre heteropessimismo e eu fui escrever sobre isso também aqui no Vagabunda. Então caiu como uma luva ler sobre uma adolescente que vive num lugar sem homens e topa, certo dia, com alguém do sexo masculino. Claro que, como tudo numa distopia fantasiosa, os extremos apenas trazem novos problemas. Um mundo sem homens não é o ideal, mas que dá um quentinho no coração ver os papéis de dominação sendo invertidos, ah dá.
Mas o que me chamou a atenção mesmo em Tédio terminal é o conto que dá título ao livro e outros textos em que a autora explora nossa desconexão com o que é ser um humano. Algumas personagens parecem sentimentalmente anestesiadas, enxergam a realidade com apatia ou, pior ainda, sequer consideram mais a realidade. A vida é o que está dentro de uma tela, ou dentro de um sonho, ou numa simulação do que seria a Terra, mas em outro planeta. As pessoas procuram por estímulos que tragam retorno rápido, felicidade instantânea, ou literalmente "pulam” as partes chatas e complicadas da vida.
É como se Suzuki estivesse escrevendo olhando para um presente que ela sequer viu na vida real, ou, no máximo, viu em seus estágios iniciais e logo pensou “iiih, vai dar merda". Porque as histórias que escreveu são só uma previsão um pouco mais exagerada da nossa própria realidade quase 40 anos após a sua morte: um mundo de gente vidrada em telas, incapazes de aguentar o silêncio, que toda hora precisam fazer algo produtivo, ou viver algo importante, ou estar sendo entretido a qualquer custo, tudo para não ficar sozinho com a própria cabeça. Aí você pode se refugiar com a ajuda de eletrodos que criam mundos imaginários, como no conto “Lembranças do Seaside Club". Ou então ter uma sobrevida dentro dos sonhos de outra pessoa, como em “You may dream". Ou tomar uma droga que faça com que o tédio da vida desapareça, como em “A fumaça entre nos olhos".
Quando a gente fica rolando infinitamente pela timeline numa rede social, ou dando play numa série atrás da outra, não é meio isso que estamos fazendo? Nos afastando da vida real e do que nos define como indivíduo? Quando a gente coloca uma máquina para simular um humano, deixamos de viver a nossa própria humanidade.
Logo em seguida, li A grande porção de lixo do Pacífico, de Vinícius Portella, também lançado pela DBA, sua segunda coletânea de contos. Já tinha adorado muito o primeiro livro dele, O inconsciente corporativo e outros contos, que já trouxe essa vibe de loucura generalizada na vida pessoal e pública devido às redes sociais e outras tecnologias.
Os contos aqui falam de um presente muito verdadeiro e um futuro próximo que, pra mim, soa como previsão. Do jeito que as coisas estão indo, com os absurdos que surgem a cada dia, não duvido que escrever esses textos tenha sido uma maneira de exercer o dom da vidência para responder: qual é o pior cenário que pode rolar aqui?
Em “Livro de rosto", vemos um homem desafogar todas a sua tristeza e melancolia em posts do Facebook lidos com certo constrangimento por seus alunos e colegas. “O sacerdócio da tela" explora a fixação de um adolescente com os piores conteúdos que se pode encontrar na internet e a sua radicalização. “Estilhaço de explosão futura” é sobre um homem insignificante que é abordado por duas mulheres que atuam em lados opostos de uma trama futurística que pode ter ele como algoz ou salvador da humanidade. "Pesadelo duplo de inverno” fala sobre um mundo em que a realidade é mascarada por filtros e universos virtuais, a ponto de ninguém saber definir se está sonhando ou vivendo aquilo de verdade.
Olhando para essas descrições breves dos textos que mais gostei, percebo como essas histórias falam muito sobre a fuga da realidade, de viver uma vida maquiada pela realidade aumentada ou, então, cronicamente online, dando origem a pessoas que não sabem mais lidar com o mundo físico — e que o renegam, até. Estando tão presente nas redes sociais, é como se esses mundos se misturassem mesmo. O virtual invade o real e vice-versa, a ponto de não conseguir mais diferenciar uma coisa da outra. O que Portella faz é mostrar como esse desejo de escapar da realidade é uma armadilha. A gente tem que encarar o mundo cagado que estamos construindo. E esses contos acertam muito ao virar nossos olhos pro que pode vir aí. É só ficção, mas cada vez a realidade se parece mais com ela.
“Mas, enfim, a realidade é só um delírio escroto e comprido do qual a gente nunca sai, aquela coisa daquele jogo das antigas, como que é? Uma história cheia de raiva e ruído contada por um idiota, significando porra nenhuma.”
Vamos sair das redes sociais?
Ao invés de deixar dicas, quero avisar aqui que estarei desativando minhas contas no TikTok e no Instagram. Sim, ainda trabalho com internet e preciso fazer coisas dentro dessas plataformas. Mas agora, vou olhar só esses perfis mesmo que o trabalho exige.
Já faz tempo que basicamente parei de pensar em conteúdos para o Instagram. Cansei de fazer vídeos, eu não sou uma pessoa de vídeos. E agora que Mark Zuckerberg, Elon Musk, Jeff Bezos e todos os outros oligarcas da tecnologia estão dançando ciranda com Trump, tenho menos motivos ainda para manter um perfil meu lá.
Quem tá no Bluesky, única rede social onde vocês podem me encontrar agora, está vendo como, desde segunda-feira, as plataformas estão diminuindo o alcance e apagando posts sobre temas que incomodam o povo da extrema-direita — como direitos das minorias, a questão da Palestina e as denúncias de um governo nazista que vem por aí, inclusive deletando posts que mostram o moço dos faguetes fazendo gesto nazista. Mais do que nunca, você está refém de um algoritmo que eles podem alterar do jeito que bem entenderem, e a gente sabe que esse tipo de manipulação só garante uma coisa: caos sem fim.
E o que falei sobre os livros ali em cima tem tudo a ver com isso também. Já não vivemos na realidade baseada em fatos, vivemos numa realidade baseada no mais recente boato distribuído pelas redes sociais, boatos que forçam a realidade até que ela envergue e quebre. E não tem o que fazer, galera. Não tem esse papo de “mas nós precisamos ocupar esses espaços e não deixar para os fachos!". Deixa eu contar uma novidade: já é deles. Nossa voz não tem mais alcance lá dentro.
Por isso vou apagar meu perfil assim que o backup das minhas fotos e vídeos estiver terminado. Vou entrar só quando o trabalho exigir, e recuperar boa parte do tempo do meu dia para fazer algo mais útil do que ser cobaia dos experimentos tecnológicos de um coitado sem amigos do Vale do Silício.
Então sei lá, se você realmente não precisa ter um perfil pessoal naquela rede, recomendo que saia. BlueSky está sendo uma boa alternativa para quem era da ala do Twitter. Não tem algoritmo ditando o que você vai ver, o botão de bloqueio funciona muito bem e você consegue ignorara facilmente usuários indesejáveis. Não é perfeito, mas é o que temos no momento.
What a week, uh? Espero que vocês se interessem pelas leituras indicadas, são livros maravilhosos mesmo. E para encerrar, conheçam a minha piranha de Pato. Eu te amo, piranha de Pato:
Tchau!
pensando em usar apenas o substack como "rede social", assim como a gente fazia quando entrava nos blogs de quem a gente gostava e interagia com as pessoas apenas por lá. Já tem tempos que peguei ranço das redes sociais, o anúncio do Zuck me tirou de verdade do Instagram, e das outras eu já tinha saído há tempos. A internet é um lugar foda, mas as redes sociais "deram errado" (pra gente, pq pra eles deu muito certo).
O Foster Wallace também tem algo sobre no Graça Infinita. Ele dizia que as pessoas conversariam pela tela usando filtros e depois não iam querer se conhecer pessoalmente para não saber como realmente são.