sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #168
As pessoas são horríveis e você está no meio delas
Antes de começar o texto de hoje, temos uma estreia nesta newsletter! Com a pausa indefinida da Associação dos Sem Carisma, eu herdei um colunista para o Vagabunda, que é o Claudio Thorne. Ele será nosso correspondente da mente da geração Z, mas juro que ele é legal, tá? Agora, vamos ao texto da semana e, depois dele, tem a coluna do Claudio. Deem as boas-vindas a esse querido!
As pessoas são horríveis e você está no meio delas
Por Taize Odelli
Neil Gaiman foi revelado como um grande filho da puta predador. Alice Munro foi desmascarada como uma péssima mãe. Nos últimos meses, não faltaram histórias de nomes famosos da literatura, do cinema ou da música envolvidos em casos de abuso sexual e acusações de violências — ou de omissões, no caso de Munro. Toda vez que isso acontece, vem a enxurrada de “meu Deus, eu não esperava isso dele, dela, deles". “Nossa, mas como pode, um cara tão legal?”. “Estou triste, gostava tanto dele…". A decepção existe e sempre existirá. Essa não é a primeira vez que você descobriu que o artista do qual gosta é um filho da puta. Nem será a última. Porque, pasmem: todo mundo tem potencial pra ser um cuzão do caralho. E alguns realmente são.
É extremamente horrível ler sobre abusos cometidos por essas pessoas ou permitidos por elas. Eu não sei o que esperam quando surgem as primeiras acusações de má conduta sobre alguém para, sempre, reagirem com tanta surpresa. Sei lá, talvez fiquem torcendo pra ser mentira, ou imaginam alguma infração muito água com açúcar que vai fazer só um arranhão pequeno na carreira do artista, e não acabar com ela, para seguirem consumindo o que ele fez sem culpa na consciênica. Aí vem uma matéria bem apurada e gigante que deixa geral chocado, enojado com as atitudes do cidadão. Ué, vocês esperavam o quê? Que seria um “mal-entendido"? Vamos lá, né galera: já somos adultos para saber que, quando o assunto é violência, o negócio é violento mesmo.
Ler sobre esses casos me deixa com a certeza de que, se Neil Gaiman fez isso, uma pessoa pública com tanta coisa em risco para ele, imagina o que um zé-ninguém faz. Como no caso Pelicot: um homem bem zé-ninguém que anunciava a própria esposa dopada para ser estuprada por outros zé-ninguéns. Nenhum vizinho diria que ele parecia ser um criminoso, alguém tão simpático, tão solícito. Toda vez que leio um desses casos, eles ficam mais e mais parecidos, com o modus operandi padronizados, até. A vítima sofre violências desde a infância, e a falta de noção dos adultos à sua volta que se calam para os sinais só faz com que elas sejam violentadas mais ainda. Ela se liberta, mas cai nas garras de outro abusador, e outro abusador, e outro abusador, porque eles percebem de longe quem tem potencial de ficar quieto e quem tem potencial de dar um soco na cara deles.
As pessoas em volta do abusador tentam amenizar sua conduta porque, pô, ele é muito legal com a galera. Eu jamais seria amigo de alguém assim, porque eu sou legal. Sim, já vi ele falando umas coisas estranhas, mas era só piada, né? Só brincadeira, né?
O pessoal mente pra si mesmo para ignorar que é próximo de uma pessoa criminosa, dando mais aval ainda para ela seguir cometendo crimes, pois quem vai desconfiar desse cara legal? Dessa vovozinha bacana? Dessas pessoas que se intitulam feministas e aliados? E daí alguém denuncia. E aí alguém finalmente ouve. E aí vai a New Yorker, o New York Times, a revista Times, a Vulture ou seja lá qual jornal norte-americano conversar com vítimas, amigos, famílias e jogar tudo no ventilador. E todo mundo fica: nossa, chocada.
Eu fico cansada dessa reação porque parece que o povo quer continuar vivendo na ingenuidade de que o mal é apenas um desvio pontual da rota, e não algo presente na nossa vida diária. Todo dia descobrimos um outro agressor que era próximo de muita gente, e muitos desses criminosos são pessoas simpáticas, engraçadas, carismáticas, porque precisam ser para atrair a próxima vítima e para disfarçar a própria conduta. O mal não é a bruxa com verruga no nariz ou um monstro do pântano. O mal tá no cara legal, na escritora sábia, no cara que cria mundos fantásticos, no cantor amigo de todo mundo. Não dá pra fazer o pikachu surpreso como se tudo o que te rodeia fosse bom e belo.
Acho que já somos grandes o suficiente para parar de colocar pessoas em pedestais e enxergá-las como grandes exemplos a serem admirados. Pessoas fazem coisas legais na mesma proporção em que fazem merda. Claro, não é para se dessensibilizar a ponto de não ficar revoltado com as histórias. A revolta tem que seguir, é com a revolta que a gente luta contra as agressões. Mas sem ficar nessa de “nunca fui tão decepcionada". Culpa sua aí de achar que todo mundo que você gosta é gente boa, cara bonzinho, nunca faria mal a ninguém. Porque sempre vai ter alguém do seu lado que faria, sim, muito mal a alguém, e só tá esperando a oportunidade certa pra isso.
Querido fígado
Por Claudio Thorne
Descobri que existe algo pior do que comida sem sal, tupperware sem tampa e notícias sobre a Virgínia passando pelo feed: é acordar às sete da manhã pela força do primeiro de muitos jatos de vômito ácido que me deixaram rouco e fraco na semana passada.
Acho impressionante a capacidade humana de se tornar detetive do próprio corpo e descobrir pelos refluxos a verdadeira causa de estar passando tão mal. Enquanto eu abraçava a privada como se fosse um ente muito querido, fiz uma linha do tempo de todos os alimentos e substâncias que poderiam ter me levado a esse inferno tão cedo e, dentre as opções, estava o hambúrguer caseiro que havia feito com minha amiga na tarde anterior, o whisky com Coca-Cola — que jurei que seria uma boa ideia — e a minha burrice em tomar bebida alcoólica, sendo que estou em fase de adaptação do escitalopram. Como libriano, tive refluxo para todas as alternativas.
Está escrito na bula, na minha testa, na mensagem do psiquiatra, na sagrada Bíblia de Jesus Cristo: não misture álcool com remédios. E minha mãe ainda completa: seu fígado, seu grande amigo, agradece. Mas, se for para errar, que seja apenas uma vez. Paguei caro pelo meu erro e meu fígado mostrou que foi bem feito. Agora, o que meu fígado e nem eu contávamos é como, ao estar passando tão mal, a companhia dos nossos pais ajuda a nos tranquilizar. Até ligar para eles, achei que estava tendo de tudo, desde um ataque de pânico até um ataque cardíaco. O vermelho que aparecia na minha frente só desapareceu quando eu vi a mensagem da minha mãe dizendo que havia chegado.
Existe uma carência em estar doente que é muito compreensível pela vulnerabilidade em que o corpo se encontra, e, por mais que eu tenha descoberto o que é pior do que uma notícia da Virgínia no feed, com jatos ácidos, eu e meu fígado descobrimos que não há nada melhor nesse mundo do que os cuidados dos nossos pais. E respeitar a bula do remédio.
Outras coisas para vocês lerem
Essa edição foi, claro, inspirada na reação da galera a essa reportagem da Vulture sobre as vítimas de Neil Gaiman e o que ele fez com elas. É pesado, não recomendo ler se você não aguenta esse assunto. Mas deixa bem claro com o modo de agir dele é igual a de todo abusador: o cara usa do seu prestígio e poder para subjugar mulheres jovens à sua vontade. Eu não tinha ideia, por exemplo, das raízes que ele tinha na Cientologia, algo para se desconfiar logo de cara. A falta de atitude das pessoas que sabiam que ele era assim, também, é outro fator nojento dessa história toda. E outra coisa: isso não tem nada a ver com você que gosta do que o Gaiman escreveu. É para discutirmos abuso e penalização, é pra falar de como podemos evitar que essas coisas se repitam, e não ficar se lamuriando que você perdeu um ídolo.
Outro texto que achei daora foi esse aqui falando sobre como somos comandados por verdadeiros lixos da humanidade que são incapazes de conviverem socialmente. A guinada ao nazismo do Zuckerberg nos últimos dias só deixou claro que os caras das big techs precisam de internação psiquiátrica, terapia profunda e cadeia.
É isso, galera. Era para eu falar sobre as últimas leituras do ano passado nessa edição, mas esse assunto acabou tomando a minha cabeça ontem. Só precisava desafogar.
Para me despedir, uma imagem de um dia de café aqui em casa:
Tchau!
edição impecável. o primeiro assunto é uma merda (disse o querido que tem uma tatuagem da coraline no antebraço), mas concordo demais com o texto, Thais. É preciso desmitificar a ideia do agressor ser um monstro. Agressores são pessoas.
Taize, penso exatamente como você. Nunca fico chocada e arrasada quando uma bomba dessas estoura. Ainda mais quando se trata de homem branco. Nada novo sob o sol. Se eu gostasse da obra antes do escândalo, iria sustentar isso e continuar com meu gosto, porque não tem o que fazer mesmo. Consigo separar obra e autor. Gosto de jogar confete mais na obra do que no autor, justamente para depois não pagar a língua.
Um beijo.
Já estou seguindo Claudio. Adoro os textos dele.