sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #178
The Newsroom e o jornalismo que não tivemos
Comecei a escrever essa edição no dia 7 de abril, Dia do Jornalista aqui no Brasil. No fim de semana, comecei a rever a série The Newsroom, da HBO, que estreou em 2012 e se encerrou na terceira (e curta) temporada em 2014. Para mim, foi uma das melhores coisas que Aaron Sorkin já fez, e estava há tempo ensaiando rever. Nas primeiras cenas, já senti tristeza. Não porque a série seja triste, na verdade ela é cheia de tiradas humorísticas, gente se atropelando na redação e situações constrangedoras que te fazem rir.
A tristeza veio porque tudo o que The Newsroom falava sobre a comunicação se tornou real. E isso aconteceu justamente porque a imprensa não fez aquilo que as personagens se propuseram a fazer na série: devolver ao jornalismo a alcunha de “Quarto Poder", aquele jornalismo raiz, o jornalismo moleque que não se importa com audiência e a presença dos anunciantes. O jornalismo sem rabo preso e que coloca o dedo na ferida e faz as perguntas que os poderosos não querem responder.
Depois de um pequeno breakdown durante uma palestra universitária, o âncora Will McAvoy deixa claro que os EUA não são o melhor país do mundo. Ele desenrola vários índices que falam de evasão escolar, desemprego, falta de moradia, e mostra sua preocupação com uma geração preguiçosa que cresceu se achando dona de tudo (olá, millennials). O discurso choca porque, até então, esse âncora de um canal de TV a cabo era visto como o isentão, o cara que agrada à Republicanos e Democratas, que desvia dos temas espinhosos para seguir sendo o mais popular dentre todos os jornalistas — ou seja, o que tem mais audiência.
Quando a linha editorial do telejornal muda, automaticamente a direção da emissora, a fictícia ACN, entra em pânico. Como assim você está criticando empresários que são nossos amigos e anunciantes? Como assim você está pegando no pé do Tea Party — grupo republicano de extrema-direita —, composto por pessoas com quem fazemos negócios? Como assim você acha que tem a liberdade de noticiar o que quiser sem sofrer represálias?
É aí que começa a maior briga da primeira temporada da série: tentar fazer um jornalismo de verdade e não ser demitido no processo. Ver The Newsroom hoje deixa um gosto ruim na boca, apesar de ser uma das séries que mais gosto. Porque já no terceiro episódio, McAvoy faz uma coisa que nenhum jornalista de grande veículo é capaz de fazer hoje: um mea culpa.
Ele pede desculpa por, nos últimos anos, não ter tratado a notícia com a seriedade devida, por ter se colocado sempre imparcial, por não ter questionado coisas que impactam a vida diária. McAvoy e sua equipe estão cientes de que o jornalismo, naquela época, estava perdendo força, sendo desacreditado pelas teorias da internet e mentiras que começaram a ser espalhadas naquela época nas redes sociais. É por isso que ele se joga nessa cruzada quixotesca, que ele chama de “missão civilizatória", de voltar a colocar algum senso na cabeça dos telespectadores do jornal — e da diretoria da emissora.
O jornalismo que The Newsroom apresenta é o jornalismo que eu gostaria de ver hoje. McAvoy se assume como um Republicano preocupado com os rumos que seu partido está tomando, ele enfrenta os entrevistados e os constrange ao apontar incongruências em seus discursos. Ele não é o cara que diz que vai ficar tudo bem, mas que tenta abrir os olhos da galera para dizer que algo muito ruim está acontecendo. Ou seja: ele contesta. Ele não pega uma mentira dita por Sarah Palin e a cita sem contexto. Enfim, ele faz jornalismo.
Bem diferente do que vivemos nos últimos 20 anos, né? A série aborda acontecimentos que se deram de 2010 adiante, e é triste ver como tudo o que Aaron Sorkin colocou no roteiro se concretizou da pior forma. Por exemplo: semana passada foi divulgada uma pesquisa de intenção de votos para as eleições de 2026, e todos os jornais deram o percentual que Jair Bolsonaro levaria. Sendo que ele sequer será um candidato, pois inelegível. O que importa pra gente saber as intenções de voto de um canalha que não pode se candidatar e está cada vez mais próximo de ser preso?
Liguei na GloboNews no fim de semana e vi a propaganda de uma série documental sobre crentes no Brasil, três episódios sobre como os evangélicos “trazem esperança” para os fiéis e vêm conquistando mais espaço. Em momento algum a chamada deu a entender que esse documentário trataria, também, da relação entre evangélicos com a política, o uso que fazem da religião para angariar eleitores. Aí pergunto: isso é jornalismo? Ou é publicidade para tentar limpar a imagem dos pentecostais?
Aaron Sorkin sabia muito bem para o que a imprensa estava caminhando lá em 2010 quando passou a usar o Twitter como fonte de notícia, se agarrando às declarações de qualquer idiota com audiência para gerar tráfico para o seu portal escondido atrás de um paywall. The Newsroom é uma representação do que deveria ter sido feito, de como o jornalismo poderia ter combatido as mentiras e o caos que vivemos hoje se eles tivessem culhões de ir contra os empresários e políticos que dominam a imprensa.
“Estou muito velho pra me ter medo de gente idiota", disse Charlie, diretor de jornalismo da ACN, quando falam das possíveis represálias que sofreriam com o novo formato do telejornal. Achei essa frase perfeita, porque o que aconteceu com a imprensa foi isso. Se curvaram aos idiotas com dinheiro. Têm medo deles, porque se publicarem uma matéria falando claramente que não existe essa coisa de pessoas trans terem vantagem sobre pessoas cis no esporte, só pra dar um exemplo, não aguentariam a enxurrada de xingamentos chamando o jornal de “woke".
Qualquer jornalista que for ver The Newsroom hoje vai achar as personagens ideais demais, quiçá até ingênuas, por se preocuparem com a ética da profissão, porque parece que não há mais lugar para esse tipo de jornalismo. Não temos força para trazer ele de volta, porque todos os veículos são covardes e/ou comprados. A função social do jornalismo se perdeu em algum lugar no início dos anos 2000 e está escondida até agora em algum porão escuro e úmido. O que temos são portais independentes sem a relevância de audiência que merecem e sem os recursos necessários para trabalhar, enquanto Globo, Folha e Estadão não sabem fazer uma apuração básica e vivem passando pano para militares golpistas e políticos criminosos porque seus donos têm medo da esquerda — isso quando não copiam matérias dos veículos menores.
Dá pra levar a sério o jornalismo que temos hoje? Eu acho que não dá, não. É quase impossível ler uma matéria num portal de notícias porque a tela está tomada por pop-up de anúncios e aquela lista de artigos patrocinados que te levam para os sites mais duvidosos que vendem técnicas para engrandecer o pau ou perder 20 quilos cagando o dia inteiro. Na TV, a reportagem sobre uma cidade destruída pelas enchentes do Rio Grande do Sul fala sobre a maior estátua de Jesus construída lá, e não sobre o descaso do governo estadual para recuperar e preparar as cidades para os efeitos climáticos. Os jornalões estão tomados por colunas com as opiniões mais burras que um ser humano pode proferir, enquanto esquecem o nome do governador de SP e do prefeito da capital que estão vendendo tudo o que podem para seus amigos.
Então assim, The Newsroom era para ser uma série calcada na realidade, pois aborda a realidade do início dos anos 2010, mas já naquela época não tínhamos uma imprensa séria, e de lá pra cá a coisa só piorou. Tudo o que Will McAvoy temia, aconteceu. As pessoas ficaram mais burras e violentas, os idiotas tomaram o poder. Se a série retornasse hoje, com o segundo governo Trump e tudo o que ele anda fazendo por lá, é bem capaz que Will tivesse se suicidado por pura falta de esperança no jornalismo. Porque se isso aconteceu, é porque ele falhou.
Duvido que algum dia um William Bonner da vida tenha coragem de entrar no ar pedindo desculpas pelo jornalismo meia-bomba que vem fazendo e volte a informar a gente com coisas que importam.
Rodada de links
O que chamam de “vício em pornografia” é, na verdade, culpa cristã. Vem ler nesse artigo aqui da Psychology Today.
Jornalismo bem feito: Chico Barney entrevistando uma mamãe reborn hostilizada na praça de alimentação de um shopping.
A era do conteúdo e o filme Minecraft, por Antônio Xerxenesy:
Esse texto da Anna Vitória sobre The Pitt meio que explica por que gosto tanto de The Newsroom: é bom ver profissionais fazendo o seu trabalho DIREITO. E The Pitt é bem boa também, essa semana sai o último episódio da temporada, na Max.
Antes de encerrar, quero avisar aos queridos leitores que agora tenho um cupom de desconto no site da Editora Instante, que tem livros maravilhosos: TAIZE15. Pra ganhar 15% na sua compra, e que acumula também com outras promoções no site (menos as de %50, naquelas datas que já conhecemos). Então se posso deixar duas dicas para vocês, leiam Nenê Bonet, da Janete Clair, único romance que ela escreveu e que eu li rapidíssimo de tão gostoso que é. E o outro é O céu da selva, da Elaine Vilar Madruga, um terror daqueles que não poupam em coisas estranhas e cenas horríveis (ou seja, bom demais).
E para encerrar, gato Bartolomeu cumprindo sua função de bibelô da casa:
Aliás, o pôster vagabundo está à venda aqui. Não ganho nada com isso, mas vai que alguém queira…
Tchau!
Texto preciso, infelizmente a realidade do jornalismo, da comunicação e do mundo hoje são desoladoras, os idiotas são levados a sério, dominam a tal narrativa e destroem tudo aquilo que poderia ser diferente.
vou comentar aqui pra _aumentar o engajamento_ mas já disse o que queria dizer no inbox: ter visto The Newsroom no último ano de jornalismo e logo ter engatado 5 anos de Folha de S.Paulo foi, no mínimo, formador de caráter.