Idiota no amor e nos costumes
Em A idiota, romance de Elif Batuman (tradução de Odorico Lea), Selin é uma jovem entrando na vida adulta, curtindo as primeiras experiências como um ser humano longe das asas protetoras dos pais. Conhecemos ela junto com suas colegas de quarto, em Harvard, se preparando para o primeiro ano da faculdade. Selin não faz muita ideia do que quer estudar, matricula-se em diferentes matérias que, de longe, despertam algum interesse nela, como linguística, arte e russo. Não há animação no relato inicial de Selin sobre sua nova vida e poucos vislumbres sobre a vida anterior a Harvard. Ela está ali, meio perdida, como se estivesse sendo levada pelos outros, e não por suas vontades, como bem mostra a cena dela pendurando um pôster de Albert Einstein na parede do quarto por sugestão de sua colega. A única coisa que faz é escrever, e a única certeza que tem, se é que existe alguma, é de que será escritora.
Selin parece uma coadjuvante observando e narrando o que acontece na sua volta. As ações parecem sempre partir dos outros: Svetlana, colega das aulas de russo, é quem mais impulsiona a protagonista nas conversas e passeios pelo campus. Hannah é uma colega de quarto meio caótica e mandona, Angela é totalmente alheia à vida das outras. E tem Ivan, um veterano que estuda matemática e começa a trocar e-mails com Selin e aluga um triplex na cabeça dela.
A troca de “cartas” com Ivan dá a Selin algo pelo que almejar, mas ao mesmo tempo mostra o quão angustiante é para ela encontrar as palavras certas para surpreender seu objetivo amoroso — um cara mais velho, viajado (ele é húngaro), mais inteligente, mais “vivido". Em certo momento, Selin desabafa para si mesma:
“Eu podia ver tudo tão claramente — a luz do semáforo mudando a noite toda para ninguém, os primeiros carros a passar enquanto o céu clareava — e fui tomada pelo sentimento de que havia muito mais na vida dele do que na minha, pelas coisas que ele tinha a fazer e as distâncias por viajar, enquanto eu nunca tinha feito nada, nem ido a lugar nenhum, e nunca iria. Tudo o que eu fazia era visitar os meus pais o tempo todo — primeiro um, depois o outro, sem qualquer sinal de que isso acabaria.”
Senti uma pontada de identificação quando li esse trecho, porque é exatamente assim que eu me sentia quando tinha a idade de Selin e estava, pela primeira vez, longe de casa e com pessoas de lugares bem diferente de onde eu vim. Pessoas que cresceram conhecendo o mundo, que tinham muitos livros em casa, que faziam programas culturais, que passavam as férias em lugares diferentes, e não indo visitar parente no interior. Depois que me mudei para São Paulo, foi pior ainda: todo mundo aqui já fez algo incrível que, para mim, é uma coisa quase que inalcançável. Eu entendi o que Selin estava sentindo, apesar dela mesma ter tido muito mais privilégios na vida do que eu.
Selin é idiota do mesmo jeito que eu fui durante os meus 19, 20 anos. Após conhecer Ivan, tudo passa a ser sobre ele, e o que mais se destaca é o nervosismo que Ivan desperta na garota. Existe uma relação entre eles nas caixas de e-mail da universidade e outra relação na vida real. Por escrito, ela pode mascarar sua vida desinteressante através da literatura. Fora da internet, Selin se sente paralisada, incapaz de dizer algo “inteligente” que a coloque numa posição de igual para igual. Na presença de Ivan, Selin está sempre em desvantagem, e por mais que os sinais de interesse dele sejam claros, ela não permite se ver como merecedora daquilo.
Eu tive um casinho que me lembrou muito as sensações que a protagonista de A idiota experimenta. Um cara que parecia muito mais maduro e interessante do que eu, porque nasceu numa cidade grande, numa família com mais dinheiro, já formado e cuja escrita eu admirava. Eu me sentia eufórica toda vez que ele me dava atenção, como se isso significasse que eu era uma pessoa interessante — como se isso me validasse. Do mesmo jeito que Ivan incentivou Selin a sair dos EUA e ir até a Hungria ensinar inglês para crianças num vilarejo, esse cara me incentivava a escrever e a sair mais da minha zoninha de conforto. Dizia que o que eu fazia era bom, e que eu era “pequena demais” para o lugar onde estava. As nossas conversas eram todas online, e fluíam muito bem. Foi só ir pra vida real que as coisas ficaram bem diferentes. Perto dele eu ficava muda, toda hora tentando pensar em algo interessante para dizer ou perguntar. Não queria parecer burra na frente dele.
Só que, assim como acontece com Selin no romance, era justamente esse receio de parecer “desinteressante” que fazia de mim uma grande idiota. Elif Batuman te faz ficar com raiva de Selin porque não é possível que ela se rebaixe tanto diante de um homem. Mas é possível sim, tanto que já fiz isso também. Selin não sabe ao certo quem é Ivan, embora sinta um desejo enorme de conhecer tudo sobre ele. Ela não dá nenhum passo nessa direção, e se faz, é sempre se anulando. Boa parte das preocupações dela é se Ivan vai ou não ligar, se tem um e-mail novo dele para ler ou não, se ela vai trombar com ele pelos corredores de Harvard em algum momento. E quando isso definitivamente acontece, é sempre um balde de água fria. Ivan até tenta, mas Selin sequer deixa ele se aproximar. Sua autoestima é fraca demais para isso.
Quer coisa mais ridícula do que gostar de alguém e não ser capaz de sentar e conversar com essa pessoa tranquilamente? Esse é o drama de Selin durante toda essa história. Ela está apaixonada, mas não enxerga essa paixão como algo que possa se concretizar. E não tem mesmo como uma fantasia se tornar realidade, porque as mensagens trocadas entre ela e Ivan que tanto a encantaram nada mais são do que uma versão literária da persona de cada um. É uma narrativa bem editada, pensada para causar admiração no outro, e não uma conversa em si. É por essas ideias que Ivan passou em seus textos que Selin se apaixonou, já que, sobre ele, ela mal é capaz de perguntar sua data de nascimento.
Se eu tivesse lido A idiota quando tinha 18 anos, provavelmente eu daria razão para todas as paranóias de Selin. Porque eu também media tudo o que era escrito num chat qualquer para construir uma personalidade gostável. Queria parecer inteligente. Bem, tudo o que eu fiz e faço aqui na internet vem dessa necessidade de querer parecer inteligente, vamos ser sinceros. Mas parecer e ser são coisas bem diferentes. E quando se trata de amor, ainda mais nesse momento de mudanças, quando temos que aprender a tomar decisões por nós mesmos, o usual é ser bem burro. “O amor é cego", ou “o amor te deixa idiota” são frases comuns ditas por muita gente que se sentiu ridículo diante de alguém. Eu certamente fui burra quanto a isso, e hoje desejo nunca ter levado essas afirmações a sério.
Porque é impossível que uma relação aconteça se você agir como Selin, pesando cada movimento e refreando cada desejo para não “parecer” burra. São incontáveis as vezes em que ela pensa “será que devo ligar para o Ivan?" e não liga, esperando alguma coisa acontecer da parte dele, e se lamentando quando não acontece. Mas nós, mulheres principalmente, fomos ensinadas durante muito tempo a sermos assim noiadas, enxergando sinais e significados onde eles não existem. A gente idealiza, a gente não comunica o que idealizou e depois sofre porque deu tudo errado. Não há nada de romântico em ser burra no amor. A gente pode ser melhor do que isso.
Parece que odiei A idiota falando assim, né? Mas não, eu gostei bastante da leitura, aquela coisa bem imersiva, avançando aos poucos com a narradora enquanto ela evolui. Só que me deixou mesmo pensando nessa dinâmica de relações que Ivan e Selin criaram, que pra minha cabeça de hoje é uma coisa impensável. É o jeito mais imaturo e idiota de viver uma paixão, e eu sei bem disso porque basicamente fiz a mesma coisa quando tinha a mesma idade. Que bom que a gente envelhece.
Para ler
Esse texto da Isadora Sinay sobre escrever com o corpo, onde ela fala de Sofia Coppola e Annie Ernaux, sobre encontrar uma narrativa que explica a nossa experiência do jeito que a sentimos e o quanto essa narrativa é bem diferente daquela feita por homens, que nos colocavam como mulheres emocionadas que se jogam debaixo do trem quando deixadas pelo amante.
Esse texto aqui do Davi Rocha descreveu muito bem minhas nóias atuais, porque realmente: pra que continuar fazendo tudo isso quando o mundo está colapsando aos nossos pés e sobre nossas cabeças? A ansiedade climática é uma realidade, e eu já não pago mais meu cartão de crédito.
Outras dicas
Dei play no fim de semana nos novos episódios de The Morning Show, e embora tenha me sentido bem entretida, eu tô achando mais fraca. Começa com uma coisa ridícula que é meter a Alex Levy num foguete do Jeff Bezos, com um personagem que é meio ele, meio Elon Musk, mas é o John Hamm, então é um bilionário gostoso pelo menos. Enfim, uma coisa meio caótica, e pelo jeito o embate da temporada vai ser vender ou não a UBC para esse bilionário. Como eu adoro as personagens, com ressalvas, continuarei vendo, pelo menos para acabar.
O Clubize de outubro vai ler A entidade, da Luciana Strauss (tradução de Marina Waquil, que é um romance curtinho sobre um prédio público estatal e seus funcionários sem escrúpulos, unindo o nosso latiníssimo realismo mágico com a burocracia chata da vida profissional. Quem quiser ler, tem desconto de 30% de desconto no livro lá no site da DBA com o cupom CLUBIZE30. E pra participar do encontro sobre a leitura, é só assinar o Clubize por R$ 10.
E para encerrar: olha o Batista. Ele é lindo de todos os ângulos.
Até a próxima!
Adorei! E, de fato, que bom que a gente amadurece (pq crescer todo mundo cresce, mas amadurecer é diferente). Mas a foto do Bastista me ganhou!
Estava me sentindo uma idiota como A idiota no auge dos meus 30 e poucos anos. É horrível se sentir assim, ficar performando algo para agradar o outro, tentando se provar boa o suficiente (sendo que já sou boa para um car%alhO). Vou colocar na lista de leitura para esse ano ainda (será?). Beijos e um cheiro no cangote de Batista.