Desde a pandemia, sinto que minha capacidade de fazer coisas que antes eram muito comuns se tornou uma dificuldade. Quem não lembra de passar dias e dias trancado em casa acompanhando as notícias, sem cabeça para mais nada? Eu não conseguia ler, eu não conseguia escrever, e depois que tudo passou, o ritmo das coisas não voltou ao que era antes.
Encontrei uma representação perfeita desse período de ansiedade em Os vulneráveis, romance mais recente de Sigrid Nunez (Instante, tradução de Carla Fortino). O vulneráveis é um livro que descreve essa sensação de impotência durante a pandemia de covid que se abateu sobre toda a humanidade. Mas não foi só a covid que nos deixou em alerta e apreensivos: no mundo de hoje, parece que tudo ameaça a nossa existência, desde políticas retrógradas que tentam ressurgir à todo custo até a tecnologia desregulamentada.
Os vulneráveis é narrado por uma escritora já idosa, presa dentro de um apartamento em Nova Iorque durante a pandemia, uma pessoa que faz parte do grupo mais vulnerável à doença. Sigrid Nunez narra como essa mulher busca passar seus dias nesse mundo novo, onde o tempo passa de um jeito diferente e a vida parece ter sido pausada. Ela passeia durante horas de parque em parque vazio, observa os poucos que se aventuram na rua enquanto reflete sobre a escrita — ou a falta dela — e, principalmente, sobre essa condição de vulnerabilidade. Até que é chamada para ajudar uma amiga de uma amiga, que está em outro estado e não pode voltar para sua casa, e precisa de alguém para cuidar do seu papagaio, Eureca, que continua em Nova York. A protagonista aceita a tarefa, se muda para um grande apartamento que tem um quarto inteiro só para o papagaio, que vira sua principal companhia. A chegada de um jovem de 20 e poucos anos na casa, que deveria estar cuidando do bicho em primeiro lugar, gera uma tensão nessa mulher, mas aos poucos ela descobre que mesmo um jovem como ele tem sua dose de vulnerabilidade.
O que Sigrid Nunez mostra aqui é como todos nós somos sujeitos a sermos afetados pelas mudanças do mundo, em maior ou menor grau. Eureca é um ser vivo vulnerável por depender dos cuidados de outras pessoas para sobreviver. Ela é vulnerável por ser idosa em um mundo tomado por uma doença que mata rapidamente — e que, também, costuma jogar os mais velhos para escanteio. Ervilhaca, o jovem com quem passa a conviver, também tem suas vulnerabilidades — a depressão, a inexperiência com a vida, o medo de que o mundo só piore. A inconstância da realidade e todas as ameaças e medos transformam a rotina dessas pessoas, as desviam do que gostariam de fazer, transformam todos em seres vulneráveis.
“Nossa única esperança é que todos concordem agora em viver da maneira como milhões de pessoas em todo o mundo vivem porque não têm escolha, o que significa consumir o mínimo possível. Tornar a sociedade mais equânime, dizem os liberais, e, claro, isso parece ótimo. Mas trazer mais pessoas para o nosso nível de afluência só vai destruir mais ecossistemas, matar milhões de espécies de plantas e animais e tornar a Terra cada vez mais inabitável. O que realmente precisa ser colocado em prática é fazer com que todos vivam mais perto da pobreza. Mas é claro que ninguém quer ouvir isso.”
E não estamos todos na merda? Lendo esse livro, enxerguei nele um tom de pessimismo misturado com esperança, além de uma boa representação do que se passa dentro da minha cabeça todos os dias. Enquanto caminha pelas ruas vazias de Nova York, a protagonista vivencia várias atitudes que, antes, não lhe diriam nada: a bronca por ter se encostado no balcão de um café, a cuspida que tomou na cara de um ciclista e o medo que se abateu sobre ela de ter sido infectada. Não vivemos mais no mundo que nossos pais conheceram, nem no mundo em que a própria autora nasceu. Eu olho para o mundo atual com o mesmo pessimismo de Ervilhaca, misturado com um tiquinho de esperança que a autora enxerga na literatura.
Porque, falando sério, vocês conseguem visualizar um futuro em que as coisas vão melhorar? Eu acho cada vez mais difícil. Hoje a gente não luta só contra as doenças e a miséria, a gente luta contra a desinformação e o caos que se instaurou graças às redes sociais. Começou antes, mas as coisas só pioraram com a pandemia: notícia falsa atrás de notícia falsa, conspirações, negação da realidade… Ver seres pensantes acreditando e distribuindo informações inverídicas me faz pensar que, realmente, chegamos no nosso limite como seres humanos: não somos mais inteligentes ou capazes do que um animal como Eureca. Na verdade, somos extremamente burros por não termos observado melhor a natureza e aprendido com ela. Estamos caminhando para a nossa própria destruição, e não importa o quanto a gente grite para tentar alertar as pessoas sobre o que está acontecendo, cada um prefere acreditar na própria fantasia que criou dentro da sua cabeça — ou acreditar em um post de coach trambiqueiro no TikTok.
“Catastrofizando. Uma tendência a acreditar que o pior resultado possível é o inevitável. O tipo de pensamento intrusivo que pode levar à ansiedade e à depressão.
Com o mundo em chamas e seus sistemas colapsando aqui, ali e em todos os lugares — com esperança após esperança revelando-se apenas falsas esperanças —, qual a utilidade desse diagnóstico?”
O fazer da escrita ocupa boa parte desse romance, pois Sigrid Nunez também reflete sobre o papel dos escritores em um mundo em frangalhos. Qual é o papel da literatura agora? O que é essencial manter nessa realidade ameaçadora? Como escrever ficção quando a própria realidade não faz mais sentido? Em um momento, ela coloca os escritores de ficção, poetas e contistas no balaio dos trabalhos não essenciais. Apenas os jornalistas realizam um trabalho fundamental, pois cabe a eles informar as pessoas e alertarem para os problemas. Mas hoje, dá pra confiar no jornalismo? Na pandemia, a gente viu uma série de veículos “sérios” propagando os maiores absurdos sobre a covid. Até hoje, vemos as notícias falsas invadirem os noticiários como se fossem verdade, gerando ainda mais desinformação e desespero. Mas a ficção, felizmente, não é irrelevante:
“Conclusão: Talvez o que se deseje em nossos tempos sombrios de antiverdade, com toda a nossa flagrante hipocrisia e o uso crescente de histórias como um meio de distorcer e obscurecer a realidade, seja uma literatura de história pessoal e reflexão: direta, autêntica, escrupulosa sobre os fatos."
Acho que esse trecho faz muito sentido: é só olhar para o boom de obras autobiográficas ou autoficcionais no mercado editorial. O mundo tá loucaço, então na falta de uma história que dê conta de explicar a realidade, nos voltamos a tentar explicar nossa própria existência individual inserida nesse meio coletivo. Annie Ernaux faz isso, Karl Ove Knausgaard faz isso, a própria Sigrid faz isso. Eu faço isso aqui na newsletter. A história mais mirabolante, hoje, é aquela que destrincha a realidade, não a que cria mundos fictícios.
Bem, é o que o povo que escreve tem a entregar ao mundo agora, né? E pra mim, Sigrid Nunez entregou um belíssimo livro em Os vulneráveis. Pode muito parecer um livro pessimista, desesperançoso, mas no final você fica com uma sensação boa, mesmo refletindo sobre o caos. Porque, em meio à tanta merda, pelo menos ainda tem gente que pensa direito e tenta dar o seu jeitinho de espalhar ideias que são relevantes para o mundo. Que enxergam na literatura um meio de explicar o que estamos vivendo. É difícil, mas é um trabalho que ainda traz alguma satisfação: a sensação de que, pelo menos, não estamos sozinhos nesse caos. Tá todo mundo se sentindo perdido, vulnerável e amedrontado.
Dicas
Eu tô no maior clima Olimpíadas, assim como o resto do mundo. Como é bom se alienar com o esporte, né? Nos últimos dias, acabei revendo algumas aberturas das Olimpíadas, e as minhas favoritas são a de Atenas de 2004 e Pequim em 2008. Que rolê formidável eles fizeram nessas apresentações.
Aí YouTube me recomendou esse vídeo explicando a história das Olimpíadas, começando com as primeiras competições na Grécia Antiga chegando até as Olimpíadas Modernas. Achei daora:
É isso, galera. Quase que não sai news hoje porque ontem eu tava com zero clima para escrever, queria só TORCER PELA GINÁSTICA BRASILEIRA, É BRONZE, CARALHO! Mas deu, sentei e escrevi, e aí está. Espero que tenham gostado.
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Fiquem na paz como meus gatos estão na paz, e bora que agora tem futebol feminino, Brasil contra Espanha.
Tchau!
Vou ter q ler esse livro agora. Influencer Taize mais uma vez me fazendo furar a fila de leituras. Obrigada ☺️
Amo ler você! Seus livros entram todos na minha lista. Obrigada!