sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #114
A impossibilidade de viver no presente
Se tem uma coisa que eu não consigo fazer direito é viver no presente. Lá vem um texto de anti-ajuda. “Viver no presente” é um termo que não diz muita coisa pra mim. É tipo aquelas palavras manjadas que as pessoas usam exaustivamente para ilustrarem sua filosofia de vida até elas perderem significado. A pessoa fala “viver no presente” e eu já imagino um texto de autoajuda profissional no LinkedIn dizendo para você trabalhar o máximo possível agora, porque pensar no futuro atrapalha a sua produtividade.
A pessoa com questões psicológicas (depressão, ansiedade, distimia, que é o meu caso) não consegue passar um segundo aproveitando o agora, porque que “agora” é esse em que nada tá bom e tudo parece prestes a desmoronar? No meu agora, estou com pouco dinheiro na conta, a ponto de comer menos para não gastar tanto. Estou morta de calor, derretendo dentro do meu próprio lar, porque o mundo está colapsando. Sigo devendo milhares de reais em cartão de crédito para dois bancos. Não consigo socializar direito porque penso na energia que isso vai consumir, nas possibilidades de merdas acontecerem na rua (assaltos, acidentes, tropeçar no meio-fio e bater a cabeça no chão). Estou olhando todos os meus amigos viajando, na praia, numa piscina, aproveitando o agora deles do jeito que eu gostaria de aproveitar o meu agora, mas não posso — invejando e me sentindo abandonada, porque ninguém me convidou pra uma piscina no fim de semana.
Isso que eu sou uma mulher branca de classe média que mora numa das maiores cidades do país, repleta de oportunidades e coisas para fazer, que tem um apartamento confortável onde posso me enfurnar — mas não confortável do jeito que eu queria. Agora imagina alguém que realmente passa dificuldades na vida, que realmente tem que lutar todos os dias para colocar comida na mesa. Como viver o presente sendo que as perspectivas de futuro são sempre tenebrosas?
Eu não consigo observar o mundo e a minha vida do jeito que eles estão e pensar “nossa, como é bom estar vivendo esse momento". E quando eu falo isso, é geralmente por algo sem propósito, tipo a alegria que tivemos semana passada ao observar a humilhação de Luisa Sonza na Ana Maria Braga. As coisas não estão nada boas quando nossa fonte de contentamento é uma discussão generalizada no Twitter cheia de memes e takes errados (mas, realmente, foi divertido).
Mesmo estando no melhor momento profissional da minha vida, meu pensamento constante é de que algo ruim vai acontecer e vou perder minha renda, seja por erro meu ou por escolha de quem me emprega. Vivo um medo constante de que serei obrigada a voltar pra vida de empregada de firma, tendo que sair da minha casa todos os dias da semana pra cumprir horário em um escritório. Esses dias, estava pensando que eu errei feio ao me mudar para o apartamento onde estou agora, mais caro que o anterior, porque ele suga quase tudo o que eu ganho. Se eu tivesse continuado onde estava, provavelmente estaria mais tranquila — mentira, eu estaria gastando igual e tendo as mesmas preocupações (e sem uma banheira), mas a minha cabeça ignora essa parte.
Esses dias perguntei pro homem se a gente estará satisfeito com a vida em algum momento. A resposta é não. Ainda mais quando a gente vive pensando que as coisas não estão do jeito que idealizamos. Principalmente nesse mundo, nessa configuração social que privilegia o dinheiro acima de qualquer outra coisa. Desculpa, não vou conseguir viver o presente se a minha conta bancária não permite isso, quando minha principal preocupação é se vai ter dinheiro pra comprar a ração dos bichos que está acabando. Não há meditação, atividade física, lazer, que tire minha cabeça das preocupações do futuro.
Qual seria a solução pra tudo isso? Virar um ser humano funcional, terapeutizado, satisfeito com o que tem e agradecido por isso. Simplesmente, não sou capaz. Seria se fosse alienada, mas pra me alienar eu preciso de um prêmio da loteria para essas preocupações acabarem. Aprender a bloquear a mente que vai para os recônditos mais horríveis da minha existência. Aproveitar as pessoas, os convites, esses momentos em que não estou sozinha e posso me distrair.
No último fim de semana, deixei de ir num encontro de amigos simplesmente porque não parava de pensar no desconforto de estar num bar debaixo de um sol de mais de 30 graus. Deixei de ir num aniversário porque estava sozinha e não conhecia mais ninguém além da aniversariante. Não queria ficar deslocada num canto, que é como geralmente fico nessas ocasiões. Depois, olhando as fotos dos dois eventos, me arrependi amargamente de não ter vivido esse presente. Veio aquela sensação nada gostosa de não ter ninguém, que é criada por mim mesma, porque convites não faltam. A culpa do meu isolamento é toda minha, mas não consigo me mexer para mudar isso.
Minha cabeça vive nesse círculo vicioso de olhar os problemas, pensar nas soluções e chegar a nenhum lugar. Cada vislumbre do futuro é tenebroso, e se eu penso algo positivo sobre ele, me censuro logo em seguida, porque se não acontecer, o descontentamento é ainda maior. Viver no presente seria lindo, mas o presente não está bom. Ou está, mas minha mente vive tentando me convencer do contrário, e ela consegue.
Para ler
Li recentemente o primeiro livro do meu amigo pessoal Bruno Cobalchini Mattos, Pequeno dicionário de etimologia alternativa, publicado pela editora Taverna. São contos que trazem origens imaginárias para determinadas palavras. Tão graciosos, tão bem-humorado e inteligente. Lembro do conto “Muamba” e cai lágrimas pela minha bochecha automaticamente.
Fiquei feliz que a Flora voltou, depois de anos, a fazer sua newsletter de coisas gostosinhas para a vida, com indicações de coisas que ela usou/comprou/fez que trouxeram contentamento. Adoro ler dicas assim, e fiquei satisfeita com o manifesto pela capa de edredom. USEM CAPA DE EDREDOM!
Essa edição da news da Vanessa Guedes merece leitura de todo mundo que escreve. "Eu acho que muita gente tem vontade de escrever e publicar, mas não se atenta ao que está sendo publicado agora. Você precisa prestar atenção nos escritores contemporâneos — seus colegas!! —, nos prêmios do ramo, no catálogo das editoras na ativa etc. Isso serve também para quem quer se aventurar em blog e newsletter, é necessário ler muito para entender até onde podemos chegar com a nossa escrita.” O que mais tem é gente pagando de escritor que sequer lê o que está sendo feito agora. Não existe boa escrita sem boa leitura.
Outras dicas
Semana passada formos surpreendidos com mais um álbum do The National, Laugh Track, irmão do último que saiu, o First Two Pages of Frankenstein. Dei uma primeira ouvida enquanto limpava a casa e gostei bem.
Vi no fim de semana a segunda temporada de The Bear, e como pode uma série ser tão boa? O episódio de Natal foi apenas pura destruição. Quando terminou, naquele caos de sempre, eu estava em prantos. Nada como um homem gostoso com problemas psicológicos para fazer eu me conectar com meus próprios problemas psicológicos.
Um dia desses, o pessoal da Big Sur Books mandou um e-mail perguntando se podiam fazer um cartaz com o título dessa newsletter. E eu falei apenas: claro que pode! (Até porque, a frase não é minha hahaha.) E ficou maravilhoso. Não vejo a hora de ter o meu pendurado aqui.
Xepa do Engajamento
Recebi reclamação da Danielly, que mora em Portugal, sobre os influencers que vivem num mundinho próprio que não tem nada a ver com a vida de imigrante. Bora ouvir ali.
Lá no Ppkansada a gente falou sobre sair da casa dos pais, foi bom relembrar esses tempos mais simples.
No último Associação dos Sem Carisma, escreve sobre a necessidade de acabar com a autoestima do homem hétero.
É isso, obrigada por lerem até aqui, e obrigada também por toda a interação que rolou lá na última news. Recebi mensagens muito bacanas de gente foda que me deixou feliz demais. Isso aqui é o que eu gosto de fazer, é o que acredito de verdade. Então, valeu mesmo. <3
Para encerrar, uma foto desse cão maravilhoso, um dos motivos para eu levantar todos os dias (junto com os outros 4 motivos que vivem aqui com a gente).
Até a próxima. :)
Eu poderia ter escrito esse texto. Muita coisa em comum, até os problemas psicológicos hahaha
me identifiquei tanto com seu texto que poderia facilmente ter dito que você tava acompanhando minha vida em primeira pessoa (não sei se é algo reconfortante ou não todo mundo estar na mesma merda junto, né?)
um futuro mais calmo pra gente 🌻✨️