sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #127
Quando as pessoas deixaram de entender o que é ficção?
É só ficção, galera. Calma
Eu amei Saltburn. Já quero começar assim: amei mesmo. Esse filme tem tudo o que eu gosto em uma história: luxo, intriga, trambique, sexo, gente moralmente duvidosa. É pra isso que eu dou play num filme, ou numa série, ou abro um livro. Quem me conhece sabe (rs) que eu curto história triste, pesada, que desafia o conceito de certo e errado. Que sabor é me envolver com uma ficção assim.
Saltburn é o novo queridinho dos polemiquentos. Vide ele, Nelipe Feto, que ao terminar o longa já correu pro Twitter para dar sua opinião, porque o mundo não pode viver sem o aval do influencer mais lelé do Brasil. Não encontrei as palavras exatas, pois não vou perder meu tempo pesquisando isso, mas para ele, foi o filme mais nojento já feito. Vou confessar que foi essa opinião que me fez querer ver Saltburn, porque se ele não gostou, certamente eu iria amar. Não deu outra.
Claro que ele, assim como os demais que não gostaram, tem todo o direito de não se envolver com a história, de achar aquilo tudo horrível. Pode ser por conta de suas convicções inabaladas, que não se dobram por nada, nem por uma história — a não ser que a vítima da crítica seja ele, Nelipe, que aí as voltas mentais para se defender são dignas de uma competição olímpica de ginástica artística. Mas super normal, né? Não gostei, achei nojento, porque na vida real ele deve abominar esse tipo de pessoa (imagina só, ter dó de rico). E é aqui que chego na questão que quero tratar hoje: a ficção não deve, nem pode, ser algo que representa apenas as suas convicções pessoais. A ficção serve justamente pra gente atravessar todas essas leis da realidade, pra gente poder fantasiar livremente. E eu acho que tem uma galera que simplesmente não entende isso aí.
Por exemplo, não foi só o filme de Emerald Fennell que se viu envolto em opiniões divididas. Nas últimas semanas, com o lançamento do musical de Meninas Malvadas e outros filmes que seguem essa toada, voltam das profundezas a galera que reclama da cantoria desses longas. Gente que chega desavisada no cinema e torce o nariz na primeira cena em que rola uma coreografia e uma música. Porque “na vida real não é assim". Que raiva eu tenho desse argumento para diminuir uma peça artística. “Não gostei porque ninguém sai cantando e dançando na rua", diz o cidadão. Mas não é justamente pra isso que eu tô aqui? Pra ver na telinha coisas que não acontecem na vida real? Pra eu suspender a minha realidade, esquecer os problemas da minha vida me envolvendo com problemas fictícios?
Me pergunto se isso é fruto, novamente, de uma educação falha que não ensina as pessoas a lidarem com o subjetivo da arte. Ou as personagens e as cenas se encaixam 100% no que você espera da vida, ou elas são rechaçadas como algo ruim, nojento, tenebroso. Ou será que isso é consequência, também, de uma realidade hiper-conectada, em que acompanhamos as “vidas reais” de inúmeras pessoas, e queremos que a mesma lógica se aplique na arte? Será que foram anos e anos de filmes biográficos indicados ao Oscar que emburreceu a galera, fazendo com que pensem que apenas o que retrata a vida real é válido? Será que o pessoal chafurdou demais em true crime pra esperar que agora tudo seja “true"? Sei lá, mas certo é que tem muita, mas muita gente que não entende esse conceito de que, na ficção, (quase) tudo é permitido.
É engraçado, ainda, pensar que muitos desses Nelipes Fetos da vida que rechaçam a arte porque ela não representa o que eles consideram certo e moral escolhem ignorar que a realidade é muito, mas muito mais estranha do que a ficção que acabaram de ver. Se o que Saltburn mostrou foi chocante, imagina o que essas pessoas pensariam ao ver Garavito, uma série documental da HBOMax sobre o cara que estuprou e assassinou mais de 190 crianças na Colômbia durante os anos 1990. Isso é mais tenebroso do que qualquer filme já feito. Mas, provavelmente, o fato de isso ter acontecido de verdade não causa tamanho espanto porque retrata a vida real. Então, quando a violência aconteceu de verdade, essa peça artística é mais válida do que a história de um perturbado criada na mente de uma mulher que nunca machucou ninguém (até onde eu sei). Entende?
Bem, essa não é uma defesa de Saltburn, em que eu que gostei tô certa e você que odiou está errado. Todo mundo tem o direito de gostar e desgostar do que quer. O que me pega são esses argumentos usados para justificar o desgosto baseados em coisas que não deveriam ser consideradas quando você assiste a um filme ou lê um livro. Ficção serve justamente pra gente desconectar da realidade, viver outra história, entrar em contato com esse recôndito obscuro que é a mente e as vontades humanas. Eu ri e me diverti horrores acompanhando as tramóias de Oliver (grande gostoso, aliás), é esse o tipo de história que me atrai porque é justamente o tipo de coisa que não faz parte da minha vida, e eu posso fantasiar na minha cabeça o quanto eu quiser sem fazer mal a uma mosca.
É pra isso que eu me agarro nas histórias, porque a minha existência apenas não é o suficiente. O que eu vejo não é o suficiente. Eu quero ver o diferente, o que é escondido, o que está bem longe da minha realidade. Porque de realidade já bastam os meus dias tediosos, meu trabalho, minhas obrigações, minhas preocupações. Tudo o que eu quero é suspender essas coisas por algumas horas e esquecer que eu sou eu e que a minha vida é essa, seja acompanhando os planos maléficos de um golpista inglês ou vendo 200 pessoas cantando e dançando no meio da rua. Se a ficção deve se ater apenas ao que acontece na vida real, pra quê ela serve?
Outras dicas
Achei bem interessante aqui essa REFLEXÃO levantada pelo André Carvalhal sobre o retorno do celular “tijolão". Eu, pessoalmente, me sinto tentada às vezes de fazer como minha mãe e usar celular sem internet. Mas meu trabalho meio que não me permite isso, infelizmente. Sou conectada demais. Porém, me fez lembrar do meu primeiro celular, que tenho saudades até hoje. Aquele tempo era bom, viu?
Eu gosto dos filminhos de Martin Scorcese, e agora que liberou Assassinos da Lua das Flores na Apple TV, fui ver, né? Gostei do filme? Gostei, mas assim… Mais de três horas, Scorcese? Pra quê? Mas deixo a indicação igual, vale mais a pena do que ver Napoleão.
Tô muito assistindo coisas, acho que minha vontade de consumir audiovisual voltou com tudo, e ontem dei play no primeiro episódio da nova temporada de True Detective pois a maravilhosa Jodie Foster está lá. Gostei do que vi, acho que promete.
Xepa do engajamento
Sexta passada fizemos um episódio especial sobre Carnaval lá no Ppkansada com a Krishna e a Clara Novais. Tem dicas para não passar perrengue, dicas de onde pular o Carnaval e pensamentos aleatórios. Ouve aí!
Pronto, galera. Finalizamos aqui mais uma edição desta news. Semana que vem volto com mais. Se cuidem, tá? Tchau.
Às vezes me pergunto se as pessoas se esqueceram como é viver offline e por isso PRECISAM emitir opinião sobre tudo e o tempo todo... E essa galera, tipo o Nelipe, que cresceu e se manteve enorme por causa de polêmica, seja agradando quem ama ou alimentando o ódio de quem odeia, vai sempre até "forçar" uma polêmica, isso dá engajamento né... Tô com você, se a ficção não puder ser absurda e chocar mais do que a realidade, tem alguma coisa muito errada com a interpretação das pessoas :/
achei saltburn uma merda, mas falando sobre o filme com outras pessoas teve um comentário que me pegou bem nesse sentido da newsletter: "me incomoda quando pessoas nos filmes não agem como na vida real"
mona elas não precisam agir como na vida real pois elas são personagens de um filme
🙏