sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #160
Sobre três livros que eu li e gente filha da puta
O foda da literatura é que, muitas vezes, gente filha da puta escreve muito bem. É o caso de Yukio Mishima, um cara de extrema direita que tentou dar um golpe de estado e cometeu suicídio logo depois vendo que isso não daria em nada (ou elaborou um golpe só para se matar como um herói? Vai saber). O negócio é que, por mais escroto que fosse, o cara escrevia bem. Descobri agora lendo Morte em pleno verão, coletânea de contos lançada pela Companhia das Letras com tradução de Andrei Cunha.
No primeiro conto (o que dá nome ao livro), acompanhamos uma tarde de verão de uma família na praia. Mãe, três crianças e sua cunhada aproveitam o descanso enquanto aguardam o marido se juntar à elas. Mas enquanto a mãe dorme, uma tragédia acontece: na praia, dois de seus filhos se afogam e ela perde também a cunhada tentando salvá-los. A culpa recai sobre essa mulher que sente não ter cumprido com seu papel de mãe e de esposa. O pai, ao saber da notícia, também se censura por não estar com a família neste momento. “Morte em pleno verão” explora a morte e os rituais que a envolvem, um tema bastante caro para o autor e que aparece em outros textos do livro. E uma coisa muito constante também é como ele explora as tradições japonesas e faz suas personagens constrastarem com elas.
Como em “A garrafa mágica", em que um homem de negócios reencontra nos EUA uma geisha com quem costumava se relacionar antes de casar. Ele tem as obrigações de marido e pai, sempre relembrando a mulher e o filho que o esperam em casa, mas aproveita que está fora da sua cultura para viver aquilo que seria censurável no seu país. Conforme ele vai se deixando envolver por esses sentimentos, cresce nele uma irritação pela vida que tem no Japão, sua família e obrigações. A raiva que seria contra ele mesmo, sua própria covardia, é canalizada para quem não tem nada a ver com a história.
“Patriotismo” é outro conto que me chamou a atenção por causa dessas tradições. Nele, um tenente planeja a sua morte após uma tentativa de golpe falha dado por seus colegas. A única saída para escapar da humilhação é cometendo suicídio, mas como ele é recém-casado, sua esposa deve morrer junto com ele. Toda essa papagaiada de honra e deveres leva essas histórias para o extremo. A morte é mais celebrada, assim como os amores, as tragédias, os desejos que nunca vão se realizar — como os do protagonista do conto “Onnagata", apaixonado por um ator de teatro kabuki. Tudo tem uma aura de grandiosidade, sabe, cada gesto e cada passo é muito pensado para evitar a vergonha e o fracasso.
Já “As pérolas” é praticamente uma comédia, retratando um grupo de senhoras que se reúne para um chá e, quando a pérola do anel da dona da casa desaparece, inventam as histórias mais mirabolantes para não serem vistas como responsáveis. Só para mostrar como uma coisa tão pequena como uma pérola desencadeia uma série de mentiras para preservar uma imagem de pessoa correta e sensata.
Só que ninguém é sempre correto, nem sempre sensato, nem sempre faz as melhores escolhas para a vida. E Morte em pleno verão é repleto disso: cada aspecto da vida dessas personagens é analisada para não romper com a imagem de cidadão exemplar que a cultura japonesa do século XX prezava — e ainda preza, né? Mas todos tem seus segredinhos, seus malfeitos, que tentam jogar pra debaixo do tapete mas sempre retornam pra superfície.
Literatura é, também, falar de gente horrível, e isso não falta em Perder o juízo, romance mais recente de Ariana Harwicz (Instante, tradução de Silvia Massimini Felix). Lisa é uma imigrante argentina que vive na França e está se separando do seu marido, um francês. Mas ao perder a guarda dos filhos para o ex, ela toma a decisão de sequestrar as crianças e foge com os gêmeos enquanto relembra todas as merdas que aconteceu no casamento.
É desse tipo de livro que eu gosto porque não existe pessoa certa na história: o marido é agressivo, a sogra é xenofóbica e antissemita, a protagonista é completamente maluca das ideias e só piora a própria situação. Não seria esse o retrato fiel de uma família? Por mais que não compactue 100% com as opiniões de Ariana Harwicz (aquela coisa, separar o autor da obra), adoro os livros dela por nunca caírem no maior conto da história, que é o das famílias felizes.
O amor que Ariana retrata é violento, inexplicável, louco, nunca é uma história de conforto e aceitação. E a escrita dela tem essa mesma pegada, vem e volta no tempo, uma história invade a outra para você ir montando o quebra-cabeças desse relacionamento e tentar redimir as personagens de suas escolhas. Mas nenhuma pode ser salva, porque todo mundo aqui em Perder o juízo é um grande filho da puta — menos as crianças, coitadas, essas sim são inocentes.
Agora, falando de gente filha da puta, mas com humor, tem A ligação, de Katharina Volckmer (Fósforo, tradução de Érika Nogueira Vieira), sobre um cara gay e gordo, imigrante italiano que vive em Londres e trabalha para um call center atendendo clientes de uma agência de turismo de luxo. A ligação me pegou pela total impaciência do protagonista, Jimmy, com o seu trabalho e a sua vida miserável. E já que a sociedade o joga pra escanteio por causa do seu físico, ele não se preocupa em agradar ninguém. A cada ligação, ele inventa uma história mirabolante para zoar com os clientes. E no intervalo de cada chamada, tenta escapar das regras rígidas do call center que representa um verdadeiro inferno.
Mas não mais infernal do que a própria casa, com sua mãe dramática e a realidade de uma vida de fracasso, só aguardando o momento dela bater as botas para, enfim, se ver livre da sua influência — o que não acontecerá tão cedo. Jimmy é sarcástico, depressivo, mas muito carente e pronto para ser amado. A questão é: quem vai querer ele? Katharina Volckmer faz dele um cara facilmente gostável, já que todo o resto desse ambiente em que a história se passa é insalubre. Ele desdenha dos colegas que levam o trabalho a sério demais e daqueles que fazem de tudo para aparentar ter uma vida invejável, porque ele sabe que na verdade todo mundo cheira à mesma bosta que ele — o livro começa assim, aliás, com o coitado não segurando o intestino antes de abrir a porta de casa.
E tem coisa melhor do que procrastinar no trabalho? Desprezar esse ambiente que exige excelência, mas que lhe entrega um salário pífio e condições de trabalho ruins? Então é engraçado demais ver como Jimmy desafia da sua maneira o status quo do lugar. Mas, no fundo, todo esse desprezo serve mesmo é para mascarar a solidão que ele enfrenta por não estar dentro do padrão de uma pessoa de sucesso: rico, magro e com condições de se manter sozinho em Londres. Nada disso tem solução, mas me diverti bem lendo A ligação porque sou fã das pequenas desobediências civis.
Mais coisas
Com o retorno do X (não voltarei), surge de novo a discussão de qual rede social usar. Muita gente tá no BlueSky, mas tem quem não saiba direito como ele funciona e fica falando por aí que logo, logo vai ser igual o Twitter quando a galera for começar a querer levantar dinheiro. Então vem aqui dar uma conferida nesse texto do Joselito sobre como funciona o BS e por que essa é uma boa chance da gente ter uma internet menos insalubre. Leia aqui.
E na editoria k-pop, Jennie está de volta! Ela lançou “Mantra” essa semana e fiquei bem feliz pois música boa. Ela e a Lisa sendo cunty vem me deixando muito satisfeita.
Tem temporada nova do podcast do meu amigo pessoal Rodrigo Levino, dessa vez voltou como Um Dia Um Show Salvou a Minha Vida, com participação do Alexandre Matias na apresentação e convidados. O primeiro episódio é com a Lorena Calábria, dá play aí pra ouvir.
E falando em podcast, esse episódio do É Nóia Minha? com o Michel Alcoforado e o João Batista Jr. sobre performar riqueza está perfeito. Bora comprar pirata mesmo, galera, porque nem com uma Chanel original nós faríamos parte do mundinho do luxo.
Pronto, entreguei as reviews das minhas últimas leitura. Pensei agora em como eu conseguia, na época de blogueira, escrever uma resenha por semana. Como eu era capaz de fazer isso? Onde ficou toda essa energia? Sei lá, hoje faço o que dá e é isso.
Fiquem com o Bartolomeu aproveitando uma naninha gostosa.
Que resenhas maravilhosas!!! Coloquei todos na lista, adoro ler livros com personagens com dualidades, que nenhum é o mocinho no fim das contas.
Você escreve muito bem e tem uma ótima leitura das histórias!
Olá Taize.
Já escrevi isso anteriormente e reforço: você faz resenhas fodas!!! E quem te acompanha, como eu, vai entender o seu vídeo do desabafo do insta.
Bom, como tenho que "apertar o cinto", dessas resenhas já coloquei para comprar "A ligação". Não tem como não ficar com vontade de ler ele após a sua resenha. FODA! E, valeu pela dica do podcast "Um Dia Um Show Salvou a Minha Vida". Já viciei e adoro ouvir os episódios quando estou lavando louça ou fazendo faxina. O que era uma prática minha com a lendária "PPKsanda". E, caracoles, não sabia que a Sade é uma banda!!! Essa informação explodiu a minha mente!!!!
Adorei as resenha e muito Axé!!!