sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa#113
Sobre Sempre Susan, se levar a sério e outras dicas de leitura
E aí, seus vagabundo.
Antes de entrar no texto principal da newsletter de hoje, quero comentar que amei o tanto de interação que a última edição teve, os comentários estavam férteis com ideias e visões sobre o que estamos fazendo aqui, em mais uma plataforma da internet que usa da nossa produção de conteúdo para funcionar. Gostoso demais trocar ideia, né?
Na edição de hoje, vou falar de livros, de se levar a sério, e dar as famosas dicas.
Séria demais
Conheci Sigrid Nunez quando li O amigo, romance que ganhou o National Book Award em 2018 (publicado aqui com tradução de Carla Fortino, pela Instante). Além do plot interessante, sobre uma mulher que passa a cuidar do cachorro enorme de um amigo que se suicidou, tendo que vivenciar o luto enquanto corre o risco de ser expulsa do apartamento que não aceita animais, o que mais me pegou nesse livro foram os comentários sobre o meio literário em que a narradora vive.
Ele é repleto de referências literárias que ilustram as ideias da narradora e comentários sobre a escrita. “Se a leitura realmente aumenta a empatia", ela escreve, “parece que o ato de escrever leva um pouco dela embora". Mas o que eu mais gostei mesmo foram as alfinetadas no pessoal dessa área, um tipo de gente que você consegue identificar de longe, com um ego que ultrapassa seu espaço pessoal:
"É um enigma para mim o fato de as pessoas do mundo literário serem tão fáceis de identificar. Como na vez em que passei por três homens em um restaurante em Chelsea e soube que eram da área antes mesmo de ouvi-los dizer: Essa é a melhor parte de escrever para a New Yorker.”
— O amigo
“É isso”, eu pensei na época em que li esse trecho. As pessoas que a narradora de O amigo encontra, suas opiniões, gostos e desgostos, estavam muito próximos do que eu mesma sentia sobre o meio literário. Só alguém que conviveu muito entre escritores e editores consegue olhar para esse mercado sem o filtro cor-de-rosa que o pessoal coloca sempre que fala do mundo dos livros. O filtro que diz que todo mundo é inteligente, interessante, importante, talentoso. Que faz o pessoal pensar que trabalhar com literatura é algo divino. É nada.
Sigrid Nunez parece ter tido a melhor escola do fazer literário, um laboratório vasto onde pode observar todas as figuras estranhas que habitam esse meio. E essa escola veio de ninguém mais, ninguém menos, do que ela: Susan Sontag.
Nunca li nada de Susan Sontag, confesso. Sei da importância dos seus ensaios, das suas ideias, mas nunca parei para ler em si. Não que eu não me interesse ou não queira, apenas não chegou o momento. Antes dessa vontade bater, o que chegou foi Sempre Susan, memórias de Sigrid Nunez sobre os anos em que trabalhou com uma das maiores pensadoras do século XX (também com tradução da Carla Fortino, também pela Instante). E esse eu fiquei com vontade de ler imediatamente.
Sempre Susan é um livro curto. Realmente não é uma biografia de Sontag, Nunez não trata de cada pormenor da sua vida. O objetivo é apenas contar como foram esses anos convivendo com a escritora, as coisas que ela dizia e pensava, a forma com que tentava influenciar e encaminhar a jovem Sigrid para ser uma escritora boa. Uma que vale a pena ser lida. E para deixar isso melhor ainda, Sigrid emprega aqui o mesmo olhar desconfiado que a sua narradora de O amigo. Por mais que ela esteja diante de uma figura importante, ela não é cegada pelo tamanho do nome Susan Sontag. Ela sabe enxergar onde ela também falha.
Como na questão da seriedade. Susan Sontag se levava muito a sério, e dizia para seus “pupilos” que eles deveriam fazer o mesmo. Imagino que, na era das redes sociais, Sontag bateria muita boca com leitores e escritores que criticassem sua obra. E imagino Sigrid num cantinho, em silêncio, balançando a cabeça e dizendo “ê, Susan…".
“Pode-se dizer quão séria é uma pessoa observando seus livros". Ela se referia não apenas a quais livros estavam na estante, mas à maneira como estavam organizados. Naquela ocasião, ela possuía seis mil livros aproximadamente, talvez um terço do número que por fim teria. Por causa dela, organizei meus livros por tema e em ordem cronológica, em vez de alfabética. Eu queria ser séria.
“Isso é mais difícil para uma mulher", admitiu. Querendo dizer: para ser séria, para se levar a sério, para ser levada a sério. Ela deu um basta nisso quando ainda era criança. Deixar o gênero atrapalhar seu caminho? Não na sua vida! Mas a maioria das mulheres era muito tímida. A maioria das mulheres tinha medo de ser assertiva, medo de parecer inteligente demais, ambiciosa demais, confiante demais. Tinha medo de ser deselegante. Não queria ser vista como dura ou fria, autocentrada ou arrogante. Tinha medo de parecer masculina. A regra número um era superar isso tudo.
— Sempre Susan
Isso me pegou demais. Uma das minhas maiores críticas ao mercado editorial e ao fazer literário é, muitas vezes, essa questão de se levar a sério. Se levar a sério demais. Já tive minha cota de experiências com isso. Mas o que Sigrid escreveu ali mudou um pouquinho minha percepção. Porque para ser mulher nessa área, é necessário um pouco de filhadaputagem na questão seriedade mesmo. Para não ser vista como uma coitadinha bonita querendo fazer algo importante. Para se convencer de que você pode fazer algo bom e de qualidade.
Não me levar a sério do jeito que deveria me serviu para blindar as possíveis derrotas. Talvez eu não seja boa mesmo, então vou fazer isso aqui despretensiosamente, sem pensar muito, que é para eu não ficar mal quando alguém criticar. Não vou colocar tanta energia nesse trabalho, tantas expectativas de qualidade, para não me decepcionar depois com o resultado.
Outra coisa que gostei muito em Sempre Susan é como Sigrid Nunez não passa a mão na cabeça de Sontag. Ela enxerga suas manias, ela sabe descartar o que lhe serve e o que não serve, o que cabe dentro de Sigrid e o que pertence apenas a Susan. Ela pode ter aprendido com ela o que é ser “séria", mas também não levou essa seriedade tão longe quanto fez sua mentora. Há que ter um pouquinho de auto-depreciação, para não cair no poço sem fundo do ego do escritor.
Pelo menos é assim que eu vejo Sigrid Nunez. Uma escritora séria, mas que não se leva a sério a ponto de se colocar acima dos outros, ou de agir como as pessoas que ela apresenta em O amigo — aquele pessoal que ama ir em lançamentos e vernissages para apresentar aos outros sua erudição e conhecimento. Talvez a grande lição de Sigrid Nunez ao conviver com Susan Sontag tenha sido aprender a ser séria com sua obra, com suas expectativas quanto ao que escreve. Aprender a se achar tão capaz quanto um homem que escreve, essa coisa que a gente cresceu levando super a sério.
Acreditar de verdade no que você faz. Uma coisa que eu tenho que aprender, mas tenho medo por ainda achar que não tenho preparo ou conhecimento para produzir algo bom.
Para ler
Já que falei de Sempre Susan, outro livro que li recentemente e que me deu vários cliques sobre a escrita foi O lugar das palavras, de Vanessa Ferrari (editora Moinhos). Trabalhei com a Vanessa lá na Companhia das Letras, onde ela foi editora, e nesse livro ela apresenta cinco tipos de narradores que encontrou nos manuscritos que avaliou durante sua carreira: o narrador saudosista, o poético, o conciso, o erudito e o autobiográfico. Ela pega cada tipo de narrador e traz exemplos de como os escritores iniciantes se perdem dentro dessas categorias, e além disso mostra como outros escritores pegaram esses elementos e fizeram algo bom. Pra quem está meio inseguro com a escrita, vale demais ler — eu, pessoalmente, me senti mais tranquila com o que escrevo depois dessa leitura.
Outro livro que acabei de ler foi Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez (tradução de Elisa Menezes, Intrínseca), que foi a leitura do mês lá no Clubize. São 12 contos de terror que me passaram aquela sensação gostosa de “gente contando história assustadora de noite". Fantasmas, corpos mutilados, crianças desaparecidas, poderes esquisitos ou apenas o horror da experiência humana. Eu gostei demais, mas não vou me estender aqui falando porque discutiremos esse livro no dia 2 de outubro no encontro do Clubize (se inscreve aqui, R$10 para participar!).
E para finalizar as indicações literárias, outro livro que amei foi Caminhando com os mortos, da Micheliny Verunschk (Companhia das Letras), que foi o livro de agosto no Clubize. Sobre esse, acho que vou escrever uma edição com uma resenha, porque despertou muita coisa aqui. Mas, basicamente, Verunschk narra uma tragédia causada pelo fanatismo religioso, em que os pais de uma jovem a queimam viva para “tirar o demônio” de dentro dela. Alternando pontos de vista e narradores, a história vai escalando em horror e violência, um abandono total de bom senso. É foda, é forte.
Outras dicas
Eu sei que é uma merda para os animais, mas não tem jeito: eu adoro shows de fogos de artifício. Fico vendo todos os shows pirotécnicos de fim de ano pelo mundo, amo mesmo. Aí caí nesse vídeo do Veritasium explicando como funcionam os fogos de artifício, algo que eu sempre quis saber como é feito. No vídeo, ele explica toda a ciência por trás dos fogos, o tipo de pólvora usada, como fazer as cores, qual pavio se usa. E no final ainda faz um showzinho próprio com umas filmagens incríveis. Vale ver.
Foda-se o Império Romano. Com que frequência você pensa na MITOLOGIA GREGA? No fim de semana, caí nesse vídeo de mais de três horas explicando tudo sobre a mitologia grega, todos os deuses, titãs, semi-deuses, heróis e afins. Se você quer manjar quem é quem, vai assistir. E assim: pensando diariamente agora, porque toda história tem uma mulher sendo sequestrada/morta/estuprada por algum deus bundão.
Xepa do Engajamento
No Santa Reclamação de Cada Dia dessa semana, falei sobre as reclamações e embates entre gerações. O que foi engraçado, porque no mesmo dia que saiu o episódio, rolou uma briga geracional no Twitter entre gente que se pega na balada e os jovens que não se pegam na balada. Enfim, ouve aí se quiser.
No Ppkansada, a gente deu uma fofocada sobre a vida uma da outra, e sobre a vida dos outros também.
Na última Associação dos Sem Carisma, escrevi sobre guilhotinar ricos, depois que um cara lá na Austrália ter dito que o desemprego deveria aumentar para que os funcionários voltassem a “respeitar” o patrão. Curiosamente, no mesmo dia que esse texto saiu, ele pediu “desculpas". Depois que as desculpas foram inventadas, você sabe…
Acabamos por hoje. Obrigada por ler até aqui, de novo. <3
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Até!
Acho que para sermos boas escritoras, precisamos nos livrar na expectativa de sermos boas escritoras.
Puta newsletter boa! Desculpa, mas amei demais!!!