Minhas duas últimas leituras se conectaram sem eu planejar isso. Ou o meu inconsciente estava tentando me dar um sinal, sei lá. Mas li Beautiful Star, do Yuikio Mishima, e Orbital, da Samantha Harvey (trad. de Adriano Scandolara) como se um fosse o complemento do outro.
Publicado em 1962, Beautiful Star acompanha uma família japonesa que descobre ser alienígena. A mãe é de Júpiter, o pai de Marte, a filha de Vênus e o filho de Mercúrio. Tal revelação aconteceu conforme um por um, em momentos separados, presenciaram o aparecimento de OVNIS. Liderados pelo pai, esses extraterrestres devem seguir agindo como terráqueos, mas sem esquecer de onde realmente são, o que confere aquele ar de superioridade às personagens. Sua missão na Terra é alertar os humanos sobre seu iminente fim, cada vez mais próximo conforme avança a Guerra Fria e as ameaças de bombas atômicas.
Beautiful Star se refere à própria Terra, uma linda esfera azul que, vista de longe, pode ser um paraíso caso os terráqueos aprendam a cuidar dela. Há um amor pela Terra, mas esses aliens disfarçados não escondem o desprezo pela humanidade por sua natureza destrutiva que provém da ignorância. O patriarca toma para si a missão de espalhar a palavra da paz extraterrestre, ganhando certa relevância com suas palestras pelo Japão. Porém, há outros como eles, porém buscam a salvação da Terra fazendo o contrário: acelerando a destruição dos homens.
Aí você lê isso e pensa: “nossa, que familiar…". No lugar dos aliens do mal que enxergam no nosso fim um meio para transformar a Terra em uma “linda estrela", imagine os magnatas das big techs com suas Inteligências Artificiais, redes sociais, produção predatória, foguetes… Elon Musk sonha com um cataclisma climático ou social que diminua a população terrestre pela metade. Muitos caras da tecnologia enxergam na IA o futuro do trabalho e dos relacionamentos, com uma crença religiosa de que as máquinas serão humanos melhorados. Os humanos e seus direitos são um estorvo aos seus negócios, e a “salvação” seria o apocalipse mesmo.
Yukio Mishima, um cara nem um pouco exemplar, escreveu Beautiful Star quando a corrida espacial estava ainda dando seus primeiros passos. A iminência de uma nova explosão de uma bomba atômica assombrava o mundo inteiro, ainda mais o Japão, que já tinha vivido essa experiência duas vezes com Hiroshima e Nagazaki. Ou seja: o pano de fundo dessa história vem cheio das paranóias daquela época sobre um fim do mundo que aguarda ali na esquina. E olhando para a história humana, não parece que o homo sapiens é capaz de enxergar o mundo na sua totalidade como esse grupo de alienígenas de planetas vizinhos que veem a Terra como uma bola azul brilhante, sem fronteiras e governos.
Nos anos 1980, 10 anos após Yukio Mishima cometer seppuku, começou a produção das peças da Estação Espacial Internacional que seria montada na órbita da Terra a partir de 1998. Essa laboratório espacial, a uma altura de 408 x 418 km da superfície, foi terminado em 2011, e desde então recebe astronautas e cosmonautas que passam meses dando voltas e mais voltas em torno do lugar de onde vieram. Pessoas que enxergam a Terra a uma altura onde qualquer fronteira desaparece, assim como os alienígenas.
Como uma pessoa animada com qualquer coisa que tenha a ver com o espaço, sempre acompanhei lançamentos de foguetes, vi vídeos de como é a vida dentro da ISS, li sobre os experimentos feitos lá e tudo o mais. Então eu tinha que ler Orbital, um romance sobre 6 astronautas e cosmonautas que sobrevoam a Terra a mais de 27 mil km/h, dando quase 16 voltas no planeta por dia. É um clássico livro em que nada acontece, mas tudo o que importa está lá.
Essas pessoas deixaram filhos, maridos, esposas e famílias para se isolarem em um tubo de metal que dispara num lugar que não foi feito para um ser humano viver. Samantha Harvey investiga o que se passa na cabeça de cada uma dessas personagens: o que deixaram para trás, como sentem falta da Terra, mas também como se sentem privilegiados de estarem naquele lugar onde cada minuto do dia é cronometrado. A ISS não causa impactos apenas na musculatura de seus corpos, mas oferece outra perspectiva sobre a vida, porque pelas janelas das escotilhas eles conseguem ver o que a gente, aqui embaixo, não enxerga: a Terra como um todo.
É aqui que está a beleza de Orbital: transpor pra gente essa maravilhamento que é estar no espaço e perceber que somos, sim, apenas uma rocha boiando no Universo. Nas noites da ISS, é possível ver a vastidão das estrelas e a solidão da Terra no meio delas. Nos dias, o céu é apenas um manto escuro, sugerindo um lugar tranquilo e silencioso. Lá de cima, quando é dia, parece que a Terra é um mundo harmonioso, calmo, porque não se vê sinal da raça humana. Porém, quando a estação se esconde na sombra do planeta, ele se acende com as luzes das cidades, uma denúncia clara da nossa presença e do nosso impacto. É quando eles lembram do caos que habita esse lugar.
Orbital é um romance reflexivo. Tudo o que eu pensava durante a leitura, além do desejo de poder ver a Terra do espaço, é como ele ilustra o quanto a humanidade não está acostumada a pensar no planeta como um organismo completo. Esse é um exercício difícil, porque nossa mente nem consegue conceber direito as distâncias que nos separam de outros corpos celestes, não entende que dentro desse planetinha, todos nós somos a mesma coisa. Só lá de cima, parece, é possível enxergar o mundo como um todo. E ao conseguir fazer isso, as fronteiras culturais, geográficas e políticas caem.
Eu não acredito em divindades, mas acredito que o Universo é um ser dotado de consciência cujos mecanismos jamais vamos entender totalmente. Perto da grandiosidade disso tudo, sabendo que existem bilhões de galáxias por aí, me conforta a ideia de que somos um nada, uma coisinha pequena, perto de toda a história do Universo. E sendo assim tão irrelevantes, não tem porque eu levar a minha existência aqui tão a sério. Na linha do tempo de tudo, minha vida não significa muita coisa, então o peso dela é aliviado.
É isso o que falta hoje, acredito. Voltar nosso pensamento para as coisas que permitem que a nossa vida aconteça. E isso significa olhar para a Terra, para a natureza, para os animais, porque essas são as coisas que fazem do mundo o que ele é. Não a IA, não a tecnologia, não um smartphone, não os bancos, não os mercados. A gente vive, hoje, por um avanço da humanidade que está acabando com ela. E nem precisamos de bombas atômicas para isso, é só deixar de olhar pra Terra. Ignorar as leis da física que regem esse lugar, renegar a ciência que explica como tudo funciona e como tudo está conectado, acreditar em entidades fictícias que teriam criado isso aqui num estalar de dedos ou numa frequência de pensamento.
Não, a Terra é aquilo que os astronautas, cosmonautas e supostos alienígenas enxergam lá de cima. Ela é tomada pela água azul dos oceanos, pelo verde e marrom dos continentes, pelo branco das calotas polares, e lá de cima todos nós somos só uns passageiros temporários dessa rocha que seguirá girando até o Sol explodir. E ela é bonita pra caralho.
Outra dica espacial
Bem, não sou astronauta, então nunca viverei a experiência de orbitar a Terra a bordo da ISS. Mas felizmente eles filmam muito a nossa casinha, e o canal AstronatiCAST tem muitos vídeos bem legais mostrando como é ver a Terra lá de cima.
Para encerrar, fiquem com o Fortunato pagando de gatinho na frente da TV durante o Eurovision:
Tchau!
Adorei o texto, Taizze. Escrevi sobre o oceano recentemente, de outra perspectiva - de quem o vê por baixo da superfície e encontra o que não deveria estar ali. Não deixa de ser uma outra forma de espaço desconhecido para a maioria de nós, seres terrestres. E se conecta com o seu texto, porque o título vem da frase do Arthur C. Clarke ("Quão inapropriado é chamar o planeta de Terra, quando é claramente Oceano”), que ele teria cunhado depois de ver as primeiras fotos do nosso planeta feitas do espaço.
Que indicações preciosas! Eu também sempre acompanhei produções sobre o espaço e agora já estou ansiosa pra ler esses (que vão com certeza passar na frente da fila imaginária dos próximos livros a serem lidos)