Ontem eu saí de casa sem meu isqueiro. Sempre dou uma fumadinha no caminho entre o metrô e a casa da chefe, e para não quebrar a tradição, parei para pedir fogo para dois rapazes que estavam na calçada enrolando um tabaquinho. O isqueiro estava com outro cara do outro lado da rua, e esperei até ele jogar o objeto pra gente e eu acender meu cigas. Nesse tempinho, os guris perguntaram com o que trabalho, e falei com cara de estafa que faço conteúdo para redes sociais. Eles logo disseram: “a gente é garçom". E só respondi: “É, muito mais puxado do que rede sociais, mesmo". No que eles responderam: “Verdade, tomara que passe esse rolê do fim da escala 6x1".
Na hora lembrei da fulana que, no fim de semana, quis pagar de inteligentona no BlueSky dizendo que o pobre trabalhador não entende o termo “escala 6x1", que a comunicação deveria ser mais “didática". Claro que ela recebeu o carinho da torcida do site, porque só alguém muito fora da realidade pensa que quem trabalha 6 dias por semana e folga 1 não sabe o que é escala 6x1. E estava ali, na minha frente, a prova viva de que eles sabem sim, e não veem a hora de que isso acabe.
A classe média que se acha super privilegiada não sabe o que é ser pobre, por mais que estejam mais próximos da pobreza do que da riqueza. É paternalista, é condescendente a maneira com que eles falam sobre a classe trabalhadora — como se eles mesmos não fossem trabalhadores. Não é nada sutil essa diferenciação que a galera faz das capacidades mentais de quem tá no chão da fábrica, servindo gente, varrendo a rua. Pra muita gente que se diz “progressista", é incapaz eles conceberam a ideia de que a classe mais vulnerável do nosso país sabe sim o quão desumano é ter que dedicar a maior parte da vida ao trabalho. Como se eles estivessem nessa por escolha própria, e não por falta de oportunidade melhor.
Ontem, também, o YouTube começou a tocar automaticamente um vídeo do canal Weird History sobre como era a vida das pessoas no Império Romano — meu atestado de hétera: citar o Império Romano. Uma parte do vídeo me chamou muita atenção: ao falar das vestimentas dos escravizados, o vídeo conta que durante um tempo os “uniformes” dos escravos foram banidos para que eles não tivessem noção de quantos eles são e, ao perceber que eram maioria, se rebelassem. Nada dá mais medo ao rico do que uma multidão de pobres pedindo pela sua cabeça, e a quantidade de pobres sempre será maior do que a dos ricos. O capitalismo não permite que seja o contrário.
Por isso a PEC pelo fim da escala 6x1 causa tanto medo no patrão e na classe média que acha que é patrão. Imagina, ter que pagar mais pelos serviços que prestam a você, deixar de ter a “comodidade” de ter sempre alguém ali te servindo a um custo baixo. Imagina pensar que o pobre pode lutar por uma vida mais digna, causar uma revolução. Isso é o fim da vidinha confortável que essa galera tem. Mesmo quando essa galera é de uma classe média delirante que coloca o seu trabalho no escritório de publicidade como mais nobre do que catar lixo na rua.
O tempo livre é um luxo que só os mais abastados têm. Tirar da pessoa o tempo é o que mais a desumaniza. Você vira um robô programado para trabalhar incessantemente, sem tempo para pensar, para se divertir, para descansar devidamente. Sem tempo para refletir sobre o que está fazendo e ir atrás de condições melhores. Vivendo apenas para trabalhar, trabalhando para chegar no fim do dia e dizer “pelo menos tô vivo”. Não, estar vivo não é e nunca foi o bastante para o ser humano. Nosso cérebro exige mais, nossa constituição humana precisa de lazer, pensamento livre, descanso.
E esse lazer está cada vez mais escasso. O lazer que temos hoje se encontra na internet, nas redes sociais, nos streamings. Mas cadê o lazer ao vivo, cara a cara? Não sobra tempo. Não sobra dinheiro — queria ver o show dos queridos irmãos rabugentos, mas R$ 800 pra ficar horas de pé num estádio não está dentro das minhas possibilidades. Lutar pelo fim da escala 6x1 é um passo importante para as pessoas retomarem um pouco o controle de suas vidas, tirar esse controle da mão do empregador. Por isso tanta gente tem medo de que o negócio vá para frente: como podemos controlar nossos cordeirinhos se dermos mais direitos a eles? Como controlar essa multidão se eles se tocarem de que são muitos, e muitos podem derrubar os poucos?
É esse o medo do “empresário", do bilionário, da classe média alta que se beneficia muito do trabalho precarizado que oferece a quem tem menos. Ninguém quer perder as benesses de ser servido constantemente por um trabalhador que não tem forças nem pra pensar em como melhorar a sua vida de maneira concreta, que exige mudanças a longo prazo. Tratar o trabalhador como ignorante, que não sabe como a escala 6x1 prejudica a vida, é uma maneira de mostrar o quão pouco você se importa com as pessoas que mantém a máquina girando. É mau-caratismo puro.
E sabe o que é pior? Boa parte dessa classe média que se gaba de ter um “bom emprego” fazem um trabalho inútil. Desculpa, mas pensar em speech de publicidade não é serviço essencial (e me incluo nesse, o que eu faço definitivamente não é essencial). Sua consultoria de negócios não é o suprassumo da carreira. Se sua vaga fosse fechada hoje, ninguém sentiria falta. Ninguém falaria “nossa, que saudade de uma boa propaganda das Havaianas", porque esse é o tipo de trabalho inventado para gerar um consumo desnecessário.
Eu mesma penso muito sobre isso: eu gosto do que eu faço agora e de com quem eu trabalho, mas muitas vezes penso “que coisa mais sem noção, se preocupar com como a galera vai receber o seu negócio e enxergar a sua marca, só faz teu serviço direito". O meu breakdown que me levou até a vida de freela foi causado por isso: por que estou perdendo a minha saúde mental fazendo um PPT para apresentar a um novo restaurante o seu “conceito"? O conceito é vocês fazerem boa comida a preço justo, e não ficar nessas firulas de “experiência, visão". Quando não enxerguei mais sentido no que me custava 8 horas diárias (mais o tempo de deslocamento), senti vontade de me jogar na frente do ônibus que me levava até o escritório. Porque muitos trabalhos são uma fantasia, não é importante, não é relevante, não faria falta.
Enquanto a galera que está na escala 6x1 é essencial. Não por causa do tempo que eles dedicam ao trabalho, mas pelo que realizam para a sociedade. É essa galera que deveria estar ganhando bem, são eles que deveriam ser os mais bem tratados pelo mercado de trabalho, com todos os direitos, benefícios e folgas. Mas é aquela máxima, né? O essencial, hoje, é empurrado para debaixo do tapete, enquanto mais uma marca de maquiagem de blogueira é divulgada como grande negócio, grande ideia, produto indispensável.
É foda que, no ano em que estamos, a gente ainda tenha que falar o básico do básico para que o povo entenda que, do jeito que está, a coisa é insustentável. Quando qualquer ideia de avanço social surge, quem tá no topo sujeitando as pessoas a uma vida miserável treme da base. E que se tremam mesmo: uma hora essa bomba vai explodir e guilhotinas vão fazer cabeças rolarem por aí. E espero que sejam as cabeças certas.
Diquinha
Pra quem gosta de um filme besteirinha sobre desastres naturais, Twisters me entregou uma boa diversão. Conseguiram achar um novo mote para a história (a exploração das imobiliárias que se aproveitam da tragédia para comprar terreno mais barato), tem personagens carismáticos, apesar do carinha que faz o youtuber ser o suprassumo da branquitude estadunidense, e belos tornados passando na sua telinha. Me diverti. Tem no Max pra ver.
É isso, galerinha. Obrigada por ler mais uma vez esta newsletter. Lembrando que, se você tá com dinheiro sobrando (o que é difícil, eu sei), considere colaborar com a newsletter assinando por apenas R$ 10 por mês para ter acesso ao podcast exclusivo só para assinantes.
E para encerrar, o amor entre as espécies:
Tchau!
Sua consciência de classe foi um alento aqui
O amor entre as espécies foi a cereja do bolo