Eu tava vendo o show da Olivia Rodrigo
Por Taize Odelli
E aí eu tive uma espécie de revelação sobre minha relação com meu pai na adolescência. Uma das coisas que eu mais me arrependo de ter feito na vida foi ter chamado ele de burro. Eu era cruel, e eu senti uma pontada dentro de mim assim que falei, mas a gente travava um embate quase silencioso quando eu entrei naqueles anos mais chatos da nossa existência.
Meu pai nasceu em 1961 em Presidente Getúlio, Santa Catarina, pois na época Witmarsum sequer tinha maternidade. Ele acabou herdando o título de "filho mais velho" assim que nasceu, pois o primeiro filho da minha nonna (oh, she's Italian), Osmar, morreu com um ano de idade. Então hoje ele é o mais velho de 8 irmãos, o mais parecido com o nonno (perdão, gente, é que cresci chamando eles assim mesmo e nunca os chamei de outra forma, vou manter a italianice). Assim como minha mãe, meu pai frequentou a escola só durante o ensino básico, trabalhou na roça de fumo desde criança, tinha que ajudar a cuidar das vacas, porcos, galinhas, esse clássico do colono do sul, assim como iniciar no tabagismo na adolescência. Quando teve a oportunidade, foi trabalhar em uma madeireira, a única coisa além de roça que um cara como ele podia fazer lá. Sempre amou dirigir, acho que com uns 20 anos ele já era caminhoneiro e viajava pelo Brasil todo puxando carga.
Quando nasci, em 1989, meu pai parou de fazer viagens que o deixavam meses fora. Minha mãe não podia mais acompanhar ele, e aí numa "jatada dentro", já que eu não estava nos planos, a vida de viagem acabou. [Pausa para outra revelação que me veio agora: puta que pariu, minha mãe sempre quis viajar, devia adorar fazer esses rolês com o meu pai, e meu nascimento meio que estragou "tudo". Yay, a próxima consulta com dra. Valéria vai ser divertida.]
Ela tinha que ficar em casa cuidando de mim, fazendo companhia para a nonna enquanto meu pai passava não meses, mas semanas longe de casa. Mas foi essa distância regular entre eles que me proporcionou a vida que tive na infância. A mudança para uma cidade um pouco maior, uma casa própria, o compromisso que eles tiveram comigo de nunca, jamais, me fazer trabalhar na infância como eles tiveram que trabalhar.
Eu, filha única, fui mimada por eles na medida que a grana permitia. Meus pais foram muito bons comigo nesse sentido, sempre me botando limites quando necessário, explicando a dificuldade, mas também fazendo de tudo para me dar tudo o que eu desejava. E eu queria estudar. Eu queria as sandálias da Xuxa, eu queria o ursinho novo da Eliana, a Eliana de 1,10 metros que basicamente foi onde eu treinei beijar aos 10 anos de idade. O teclado aos 7 anos, com minha mãe me levando pelas ruas de paralelepípedo da cidade de bicicleta para ter aulas no centro às 7 da manhã. Eu tive a televisão no meu quarto, o DVD, depois o computador, o segundo CD da Avril Lavigne (original, o que era um luxo pra gente), o primeiro DVD da Avril Lavigne, o DVD do Linkin Park. Um quarto completamente laranja berrante com móveis escuros porque eu era revoltadinha e gostava de rock. Eu não bebia, eu não fumava, eu não me metia com os guris porque não queria ficar falada. Fazia, como meu pai sempre me lembrava, a minha obrigação: estudar e ser uma boa garota.
Eu lembro que ali entre meus 4 e 11 anos, a coisa que eu mais ansiava era meu pai chegando em casa. Minha mãe tava lá segurando a barra da educação, as manhas que eu fazia, minha indiferença, porque aparentemente eu dizia que adulto não brincava com criança, e por isso eu sempre brincava sozinha e não incluía ela. Mas meu pai, que era uma raridade na minha rotina naqueles anos, era sempre recebido com alegria e animação.
Meu pai é aquele tipo de leonino que onde chega é a alegria da galera, sabe? O cara da piadoca. Ele não é de beber, só de fumar e jogar bocha, que era o que ele fazia quando estava de folga em casa, deixando minha mãe sozinha pra ir pro bar. Nessa época eu ía pro bar com ele sempre que podia. Ficava lá no meio dos caras jogando sinuca, brincando no jardim da casa ao lado, só aparecendo pra pedir um refrigerante ou algo pra comer. Ele gosta de música caipira, gaúcha, bandinhas alemãs, a tal "música de velho". Um cara da roça, enfim. Ele só me bateu uma vez, um tapa no rosto quando eu era pequena que deixou ambos chocados e que nunca mais se repetiu.
Aí vem a adolescência e o choque de mundos. A infância que meus pais me deram não foi a infância que eles tiveram. Eu certamente fui muito protegida e privilegiada. Também teve o inevitável avanço tecnológico que eu peguei ali no início da sua popularização, e que eles não quiseram acompanhar. Isso dividiu o mundo do meu pai do mundo que eu queria construir para mim. E foi na adolescência que isso eclodiu em certa crueldade da minha parte.
Tá, muitos parágrafos e eu ainda não expliquei o que Olivia Rodrigo tem a ver com isso. Olivia Rodrigo é para as adolescentes de 13 anos de hoje o que Avril Lavigne foi quando eu tive 13 anos. Meu pai não entendia Avril Lavigne. Ele me dava o CD de presente, mas ele não suportava ouvir. Para ele, rock e pop eram coisa de gente drogada. Bom mesmo era o que ele ouvia, e que eu ouvia também, pois sei até hoje as letras das músicas do Gaúcho da Fronteira, Chitãozinho e Xororó e Tonico e Tinoco (meu primeiro show, aos 2 anos de idade).
Meu pai rejeitava as coisas que eu gostava. A série que eu tava assistindo era chata, e ele chegava já trocando de canal e botando em algum filme de faroeste que eu achava chato. Ele sempre queria me puxar pra dançar, e eu tinha tanto medo e vergonha de algo tão físico como a "dança de casal" que me sentia constrangida toda vez. Ele sempre queria que eu fosse com ele nos churrascos com amigos, algo chatíssimo. Quando colegas de trabalho com suas filhas visitavam a nossa casa, eu odiava ter que fingir que gostava daquelas meninas que nunca vi na vida e estragavam meus brinquedos.
Ele odiava levar a gente até o shopping, que era o passatempo que eu mais gostava, pois sempre fui uma grande consumista. Então eu meio que sugava o dinheiro dos meus pais com as coisinhas que eu queria, e acho que aí pode-se ter criado um ressentimento. Mas o fato era que ele rejeitava o que eu gostava (mas nunca deixava me faltar nada), e eu passei a ser a adolescente afrontosa que vai contra tudo o que o pai diz. Se ele fumava, eu odiava cigarro. Se ele gostava de futebol, eu odiava. Acho que a culpa não é dele nem minha, porque eu buscava uma aprovação dele enquanto queria, ao mesmo tempo, ter uma vida totalmente diferente que ele não entendia. Nem tentou entender.
Nunca resolvemos essa questão. Saí de casa aos 18 anos, nunca fomos uma família de conversar e entender o que o outro está sentindo, algo que eu desenvolvi com a minha mãe só depois dos 25 anos. Talvez, se meu pai tivesse tentando entender a Avril Lavigne lá em 2002, a gente estaria se falando mais hoje, e eu não teria chamado ele de burro ou caçoado da "jequice" dele. Mas também não é minha culpa, não tem como eu, adolescente, entender essa falta que a proximidade entre a gente. Com certeza há adolescentes hoje que estão lá vendo Olivia Rodrigo cantar sobre suas desilusões amorosas que estão começando a entrar nesse tipo de embate.
Os pais não entendem o mundo em que as filhas estão crescendo porque sempre fizeram questão de separar o que se ensina para uma menina e o que se ensina para um menino. Não entendem como a gente sente as coisas de um jeito diferente e mais intenso do que eles. Para o meu pai, eu certamente vivia uma vida de princesa e não podia reclamar, e vivia mesmo, só que ele também desprezava essa vida quando não demonstrava interesse pelas coisas que eu estava vivendo naquele momento. Pelo indivíduo que eu estava me tornando.
Ele nunca pediu para eu explicar o que eu faço, entender o que eu gosto de ver, de ler, se interessar ou elogiar algo que eu tenha feito ou goste. Não teve essa tentativa por parte dele. E acho que, para muitos pais hoje, ainda falta entender isso. Que por mais que as birras da sua filha adolescente sejam chatas, coisa de mimada, se afastar e rejeitar a atenção que ela precisa nesse momento crucial da nossa formação só gera mais afastamento, ressentimento e arrependimento. Tem muito pai que deve estar puto por ter que levar a filha pra ver Olivia Rodrigo no Lollapalooza em meio à chuva e lama, porque os organizadores se recusam a contratar o Instituto Cacique Cobra Coral, amaldiçoando o momento que deram aquela jatada. Mas pô, tenta pensar no que você está proporcionando pra ela. Tenta demonstrar interesse e participar desses momentos que são especiais pra ela. Tenha paciência na hora de dar a real sobre a vida, porque a gente precisa, sim, de uma real de vez enquanto.
E aí, pensando em tudo isso vendo o show da Olivia Rodrigo, veio toda essa memória da minha adolescência, do meu pai, o aperto no peito por causa daquele dia de 2004 que chamei ele de burro injustamente, porque sei que nunca foi fácil pra ele. Mas se ele tivesse se interessado um pouquinho mais, rejeitado um pouco menos as coisas que me eram caras, talvez hoje a gente se falasse mais e não ficasse só na troca de vídeos de animais no WhatsApp, nos comentários sobre o tempo e os legumes que eles colhem lá em Indaial. Talvez eu já tivesse conseguido pedir desculpa pelo "burro". Só que ainda não consegui, e sei lá se vai rolar em algum momento.
Enfim, semana passada eu disse pra ele que tava com saudades.
Tudo menos o silêncio
Por Claudio Thorne
A golden hour dos dias de um jovem gen-Z como eu é rodar a timeline do TikTok até dormir. Em meio a vídeos de unha encravada, cravos doloridos e bolsas que custam um carro, me vi aterrorizado e um tanto impressionado com as blogueiras de skincare dessa rede.
São oito camadas de creme para rugas que não existem, cinco camadas de hidratante facial para peles já brilhosas e um par de meias de algodão amarradas no cabelo para que, no dia seguinte, as mechas acordem onduladas e cobertas pela touca gigantesca de cetim. O segredo da beleza deixou de ser o sono e agora é a máscara de lifting que já está no meu carrinho da Shopee.
Os dias agora passam em 1,5x. Respondemos centenas de mensagens, pulamos inúmeros stories, rodamos de app em app e mesclamos a hora de dar like com a hora do almoço, do jantar e do banheiro. Tenho dó do cérebro, que aceita passar ou assistir a vinte e oito camadas de creme de skincare porque não consegue aceitar o simples silêncio de deitar e dormir.
Para ler mais
Esse texto da Livia Piccolo sobre Adolescência, série maravilhosa que tá na Netflix, e o seu filho:
Esse texto da Paula Cruz sobre inteligência (burrice) artificial, mais do que necessário depois da trend ridícula que a galera entrou só pra ter uma imagem “fofinha". Se você entrou nessa trend, por favor, sinta-se otário.
Caí nesse vídeo sobre Paranapiacaba, um distrito de Santo André que foi importante pra modernização do Brasil e que tem fama de mau-assombrada. Nunca vi essa youtuber, mas gostei de como ela foi investigar as histórias do lugar e mostrar como a população mantém a história de pé. E me deu uma puta vontade de ir visitar.
Episódio de março do Vagabundacast, para ouvir é só assinar esta newsletter contribuindo com R$10 mensais.
Só para dar uma satisfação para vocês: semana passada não teve a edição normal da newsletter porque eu estava em modo viagem. Duas cidades, dois dias para acompanhar a chefa nas apresentações do É Nóia Minha? Ao Vivo. Foi corrido, mas foi legal demais. E aproveito pra deixar aqui aquele agradecimento a quem foi e também deu um oizinho pra mim! Obrigada pelo carinho, galera, fico feliz demais em saber que vocês gostam dessa loucura que faço aqui.
Fiquem com o Batista logo após eu voltar pra casa como um agradecimento:
Tchau!
Sou mãe e esses dias escutei um conselho sobre maternidade / paternidade que se aplica muito aqui: a melhor coisa que você pode fazer pelo seu filho é se interessar por ele. Verdadeiramente e inteiramente. Minha filha tem só 6 meses, mas pretendo levar isso pra vida. Teu texto ilustrou um pouco mais esse conceito. Obrigada!
Seu texto quase me fez chorar Taize! Me identifiquei com sua relação com seu pai, mas no final meus olhos encheram de água pq meu pai faleceu tem uns anos, e e saudade infelizmente não pode ser aplacada aqui. Ótima reflexão, e me fez lembrar dele com muito carinho.