Ter um gato
Por Taize Odelli
Eu fui uma criança privada de bichos de estimação. Imagina você morar numa rua em que toda a sua família tem um cachorro, um gato, e você ser a única criança sem um bichinho para chamar de seu. O máximo que minha mãe permitiu foram aves: os periquitos, as tiribas que caíam do ninho e meu pai resgatava. Mas gato ou cachorro, zero. Sabiamente, minha mãe tinha noção de que o trabalho iria ficar todo pra ela, já que eu não ajudava em nada em casa e meu pai vivia fora. Se ele dissesse que viu um cachorro na rua e queria trazer, ela logo mandava “ou tu, ou o cachorro, os dois não".
Com 23 anos, já morando há um tempo sozinha, adotei meu primeiro gato. Uma amiga da faculdade encontrou ele num terreno baldio do lado do prédio em que morava, levou pra casa e postou no Facebook a foto de um frajolinha todo mirrado procurando um lar. Apenas falei “deixa pra mim". Ele já tinha nome, Horácio, e na hora me apaixonei por ele. Minha mãe, claro, falou “mas você vai conseguir cuidar dele?", porque nunca tive experiência com isso na vida. Só para, na semana seguinte, já chamar o bichinho de neto.
Horácio sempre foi um gato doido. Se jogou do terceiro andar quando se assustou com o barulho do aspirador de pó — a idiota aqui não tinha telado o apartamento. Saía correndo pela escada do prédio sempre que via uma oportunidade, queria viver passeando pela rua. O que não era possível, agora ele era meu e eu tinha que manter o animal seguro. Ele sempre recebia bem e com carinho todo mundo que chegava em casa, para logo depois se revoltar e morder uma mão ou um braço. Era o jeito dele de pedir atenção. Lembro que, no primeiro ano de vida dele, pensei muitas vezes que não deveria ter adotado porque ele estava me dando um puta trabalho e me estressando a cada nova mordida.
Só que logo ele vinha pedir colo se metendo na frente das páginas dos livros, deitava e dormia. O arrependimento ía todo embora. Aquilo lá era um ser vivo que escolheu ficar perto de mim, que estava demonstrando algum tipo de afeto que eu, na época já sem namorado e me virando sozinha em uma cidade onde eu conhecia poucas pessoas, sentia muito a falta. Aliás, ele foi fundamental nesse primeiro ano, porque eu estava vivendo a primeira grande desilusão amorosa da minha vida, e quem estava lá para segurar as pontas? O Horácio. O pobre se banhou com as minhas lágrimas, e se eu não sucumbi ao ímpeto de me jogar de algum lugar alto, foi porque agora eu era responsável por ele.
A primeira vez que senti medo de perder o Horácio foi quando eu estava preparando minha mudança para São Paulo. Tive pouco tempo para arrumar tudo, e poucos dias antes de ir descobri que o apartamento que havia alugado não aceitava animais. Chorei desesperada para os meus pais perguntando o que fazer, eles disseram que poderiam ficar com ele, mas eu já não queria ter que abrir mão do meu gato para viver o sonho de trabalhar em uma editora — e que bom que não fiz isso. Reclamando no Twitter, todo mundo me falou que era proibido que o condomínio ou proprietário proibissem animais, que isso está amparado na lei. Aí pensei “foda-se, vou com gato e tudo". E deu certo. O Horácio, coitado, ficou traumatizado com o avião, passou uma semana em silêncio sepulcral até me perdoar pelo ocorrido.
Dali em diante, foram mais uns meses de convivência só eu e ele. Logo fui morar com uma amiga que também tinha uma gata, e percebi que tudo o que o Horácio queria era uma companhia da própria espécie para ficar mais tranquilo e menos violento. Ok que ele sempre encheu o saco da gata Lia, mas no fundo eu sei que eles se gostavam. Quando voltei a morar sozinha, vieram mais bichos: a Dolores para fazer companhia para o Horácio, o Fortunato, o Bartolomeu… Por último, meu primeiro cachorro, o Batista, e aí aprender a cuidar de outra espécie diferente. Mas o Horácio sempre esteve comigo na maior parte da minha vida adulta. Ele me acompanhou em todas as minhas mudanças aqui em São Paulo, tanto de casa quanto de emprego — e de vida.
Nas últimas semanas, Horácio começou a dar sinais de que não estava bem. Gato velho, 13 anos, sabia que essa hora iria chegar. Fiquei de olho, mas sem grandes preocupações. Um vômito aqui, outro ali, como já tinha acontecido outras vezes e ele sempre melhorava. De repente, ele foi comendo menos, e notei que do nada ele perdeu muito peso. Me culpo muito, agora, de não ter levado ele antes no veterinário, sendo que eu tinha guardado dinheiro justamente para esse tipo de coisa, mas é como se nunca encontrasse tempo para resolver algo que estava ficando urgente. Até ficar. Na última semana, ele parou de comer e a preocupação virou desespero. Horácio estava desidratado, precisava de internação.
Eu sempre pensei que, quando ele ficasse mal a esse ponto, eu optaria pela eutanásia. Eu sou a favor da eutanásia para mim mesma, aliás. Não queria fazer o gato sofrer só para ele ficar mais um tempinho comigo, e também jamais teria o dinheiro para custear um cuidado desses. Só que uma coisa é você imaginar como vai ser a despedida de um ser que você ama tanto, outra coisa é você conseguir olhar pra ele e dizer “pode deixar ele ir". Durante o feriadão da Páscoa, eu fui visitar ele no hospital veterinário com a certeza de que aquele dia seria o último. Sábado ele estava muito mal, nem conseguia se levantar direito. E daí, no domingo, ele deu uma melhorada, e no que ele puxou minha mão pra perto dele e me deu uma mordidinha, eu soube que não conseguiria pedir para eles matarem o meu gato porque eu já não tinha mais dinheiro para aquilo.
Mas eu tenho pessoas maravilhosas na minha vida, é aí que está a minha sorte. Camila, desde o início, disse que me ajudaria. Logo o Bruno falou que também tava lá para o que precisasse. No final, precisei, e muito, e não sei nem como agradecer ou pagar de volta, porque a conta foi alta. Altíssima. Horácio ficou 7 dias internado e ontem, finalmente, pude trazer ele pra casa. Provavelmente ele está com uma inflamação no intestino ou, talvez, até um linfoma, mas só os próximos exames, quando ele estiver mais recuperado, vai dar certeza disso. Mas o principal é que ele não sente dor, está desperto, respondendo aos remédios e os exames estão melhorando a cada dia.
Hoje paguei a conta. Ainda penso no absurdo que é usar de todas as maneiras possíveis e gastar o que tenho e o que não tenho para manter o Horácio vivo. Mas quando você tem um gato é assim. Você quer dar pra ele tudo o que ele precisa para ficar do seu lado. Você vai visitar ele na internação, e ele te recebe com carinho e um olhar que te dá certeza de que ele quer viver, e viver com você. Você lembra de todas as palhaçadinhas que ele fez, as pessoas que ele mandou para o hospital por causa das mordidas fortes, as vezes em que ele te consolou durante as crises de choro. Você não consegue se imaginar entrando em casa sem ser recebida por ele. Porque ele é sua casa, é a sua vida. E eu não sei mais como é viver sem o Horácio, porque eu nem lembro de como era a vida sem ele.
Ontem, quando me deitei pra dormir, Horácio levantou da caminha que fiz para ele no chão, sentou no chão e ficou olhando pra cima, esperando que o colocasse na cama do meu lado. No que fiz isso e me aninhei perto dele, ele enfiou o focinho no meu pescoço e respirou fundo. Ele estava feliz de estar em casa e comigo. E isso já fez valer todo o trabalho que ele me deu.
Larga essa vassoura
Por Claudio Thorne
– Amiga, largue a vassoura. Você não precisa disso.
– Amigo, mas eu quero.
– Você não deve. Não tenha essa consideração.
– Ele teria comigo.
– Se ele tivesse, estaria aqui. Largue ela agora.
– Mas eu quero deixar organizado porque essa sou eu.
– Seja na sua nova casa. Daqui há dois anos, terá se arrependido de passar essa vassoura.
Carregando as malas da mudança com suas roupas e xícaras, a esperei do lado de fora enquanto ouvia o deslizar da vassoura pelo chão do apartamento. Se fosse eu, teria arrastado todas as cerdas sujas pelo teto. Não é raiva por ele, mas raiva por mim.
Bem, gente, sem diquinhas hoje porque eu já não mandei a newsletter da semana passada e escrevi essa na pressa. Agradeço muito quem quiser se tornar apoiador desta newsletter para contribuir com os futuros gastos que Horácio vai me trazer. Só R$ 10 por mês. :)
Beijos, obrigada pelo carinho, e até semana que vem!
Eu tive um, Otávio, que viveu 20 anos...dos meus 13 até meus 33. Quanto mais velhinhos, mais doces e carentinhos eles ficam.
Um abraço em vc e no seu Horácio <3
As melhores energias para Horácio!
Perdi minha gatinha, Bebê, há 2 anos, ela tinha 18 anos. Até hoje dói lembrar do fim, mas lembrar da vida ao lado dela são as lembranças mais felizes.