Com muitos anos de atraso, dei play em Sopranos na semana passada. A série estreou em 1999, eu sequer tinha HBO, então não havia como eu ter assistido na época — e também, eu tinha 10 anos de idade, não era recomendável.
Sabia que não era recomendável por causa de uma cena que sempre ficou na minha cabeça já naqueles tempos, quando vi um pedaço da série na casa de uma tia que tinha TV a cabo: Tony Soprando esperando na salinha da psiquiatra, é chamado pra entrar e vê seus amigos transando com algumas mulheres. Era um sonho dele, claro, mas na minha memória, até eu dar o play agora e ver de verdade, aquilo era real e me causou um espanto gostoso ao ver a sexualidade assim, exposta. Relembrando isso agora, realmente, HBO é o canal para ver peitinhos.
Enfim, dei o play na busca por algo bom para assistir e terminei a primeira temporada no final de semana. Não tem como ser ruim uma história em que um proeminente nome da máfia desafoga suas angústias sobre “trabalho” e família num consultório para uma psiquiatra. Aliás, achei até meio inverossímil a desenvoltura de Tony desabafando quando a dra. Melfi consegue fazer ele falar. Porque né, que homem hétero sabe identificar seus sentimentos e falar sobre eles? Ainda mais um convicto “fora-da-lei"? Como pode alguém que ganha a vida matando e extorquindo os outros ter tantas questões éticas para discutir?
Na semana passada, viralizou o tuíte de um advogado comentando a foto de uma menina que pegou uma daquelas tartarugas de sinalização da pista — sei lá o nome certo disso — e levou pra casa. Ele só falou “galera, vamos evitar postar crimes", e enquanto as pessoas questionavam que isso não poderia ser crime, “e se ela tivesse encontrado solto no chão?”, ele só respondia: “linda história. Segue sendo crime". Essa frase eu fiquei repetindo mentalmente a cada consulta de Tony Soprano.
Eu entendo a fascinação que a gente tem por criminosos. Primeiro porque é um meio da gente fantasiar o que é sair da linha. Uma pessoa em sã consciência não vai espancar o vizinho que tá devendo dinheiro, mas Tony Soprano vai, ele faz isso pela gente. E segundo, por ser uma história de máfia, a série fala muito sobre ser fiel às regras morais que aquele grupo estabelece: a santidade da família, a lealdade aos amigos, as regras de boa convivência em que se espera que um homem cumpra a sua palavra. Coisas que os mais velhos dizem sentir falta nos dias de hoje, nesse mundo desvairando onde homens se beijam na rua e mulheres rebolam a bunda — insira aqui a cara da mãe do Soprano.
Sopranos pega muito nessa coisa super tradicional da família e dos bons costumes, as personagens falam com melancólica nostalgia dos chefões do passado e sua honra, agora abalada pelos gângsters negros que se pavoneiam por aí e traem uns aos outros (na visão deles). Personagens tão morais, tão preocupados com o bem-estar dos seus, pessoas muitíssimo do bem e religiosas. Se não fossem mafiosos, seriam até exaltados como cidadãos exemplares. Linda história. Segue sendo crime.
Mas essa ética do crime, ainda assim, parece mais bem fundamentada do que o que temos hoje em áreas mais “profissionais” e “legalizadas". Não dá pra taxar apenas Tony Soprano como criminoso malvado quando temos banqueiros, as grandes empresas do agro, da tecnologia, da comunicação, todas atuando como verdadeiros mafiosos agiotas sob o aval da lei. Pô, tomar um apavoro dos Sopranos não é muito diferente do apavoro mental que o NuBank faz para você pagar sua fatura (e jamais pagarei, pelo menos o NuBank não vai tentar me matar… Ou vai?). Tony tem muito mais caráter e culhões do que os donos do roxinho. Mas segue sendo crime, né.
Então essa visão nostálgica da era de ouro da máfia italiana nos EUA se justifica dentro da história, lá pelo menos as regras estavam bem claras. Essa virada do milênio em que a série se passa vem como um aviso de como as coisas estão mudando e vão mudar cada vez mais. O crime, nessa hora, parece o menor dos problemas. Bater em alguém até a pessoa virar patê não é o que tira o sono de Tony Soprano e o deixa depressivo. É a sua bagagem emocional que pesa nos ombros no fim do dia: as manipulações da mãe, a crise no casamento, o jogo de poder com o tio, os filhos crescendo e fazendo perguntas difíceis… Crime? Pfff… essa é a parte mais fácil do dia pra ele. Difícil é deitar a cabeça no travesseiro e dormir lembrando de todos os traumas familiares.
A gente simpatiza com Tony porque ele demonstra vulnerabilidade com essas coisas. Dá até pra esquecer que ele é um chefão do crime, e a própria dra. Melfi esquece disso — agora que comecei a segunda temporada, tô curiosa para ver pra onde vai o interesse dela por Tony também, minha aposta é que ela é tão fascinada pelo errado quanto a gente que se entretém com true crime. A violência física de Sopranos vem quase como um alívio para a dor existencial. A instituição família é tão forte, tão poderosa, que nem o cara mais parrudo do universo consegue superar sua relação com a mãe manipuladora. Nem ele tem a força necessária para apagar essa velha chata.
Será que a HBO tava tentando avisar a galera de que a família tradicional é a verdadeira máfia? Vou fingir que sim. Enfim, Soprano me agradou muito. Linda história.
Dicas
Parece que comecei a ver a série na hora certa, pois ontem saiu o trailer de um documentário sobre David Chase, criador de Sopranos: Wise Guys. Estreia dia 7 de setembro.
Esses dias YouTube me recomendou esse vídeo do canal RojoFern sobre bombas atômicas e a escala das “mushroom clouds” que elas criaram. Gostei muito da edição dele, do roteiro, de como tudo é explicadinho, bom vídeo pra ficar vendo chapada.
A BBC Brasil anda fazendo uns documentários/reportagens legais sobre trambiqueiros na internet, né? Teve o da Kat Torres, e agora tem desse cidadão aqui que deu vários golpes com sua “agência” de viagens de luxo. É fácil demais cometer crimes na internet.
Esse texto da Isadora Sinay sobre a obsessão dos millenials em lerem sobre si mesmos tá, oh, uma belezinha:
Acabamos por hoje. Lembrando que o formulário do Pergunte para a vagabunda segue aberto para quem quer conselhos, é só mandar sua questão aqui.
Fiquem com vontade de bocejar vendo o Batista bocejando.
nunca vi sopranos (talvez nunca veja, o tempo dirá) mas gostei bastante do texto. Vou usar "linda história; continua sendo crime" toda vez que lembrar dos trambiques do meu falecido pai — váááárias lindas histórias, viu
Adorei o "família tradicional é a verdadeira máfia".