Sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #186
Desopilando na Feira, vou dar um curso e um boneco de neve
A vida lá fora
Por Taize Odelli
Terça-feira, 17 de junho: não acordei porque não dormi. Na ânsia de melhorar de uma gripe, tomei Coristina D e esqueci do remédio para ter uma noite tranquila de sono. Não cogitei tomar ele às duas da manhã com receio de não acordar à tempo para uma reunião. Passei a noite me revirando na cama, com a rádio mental sintonizada na minha playlist de músicas do Eurovision. Nada me fez apagar a mente para tudo o que há de errado no mundo hoje. E, infelizmente, essas coisas impactam diretamente a minha vida e a minha sobrevivência.
Antes mesmo da reunião, eu já tentava segurar uma crise de choro que eclodiu assim que o primeiro problema relacionado à redes sociais pulou na minha frente. Deixei o choro vir. Cogitei largar tudo, desistir, porque a desistência traz alívio. Entrei na reunião com a câmera desligada, pois não tinha como aparecer chorando como uma coitada. A voz a gente consegue disfarçar, os olhos vermelhos não — e olha que isso aconteceu nos dias em que estava sem fumar o cigarrinho da paz.
O que me trouxe consolo é que as coisas que me irritam no trabalho também irritam as pessoas que me pagam. Meu desespero não é exagero, porque tá todo mundo desesperado nessa área. Eu sei que o problema não são as pessoas, mas como esse negócio funciona. A fonte da minha crise é o esgotamento mental causado por esse ambiente onde quem dita as regras é um homem medíocre sem amigos — estou apontando para você, Mark Zuckerberg. Minha crise vem do medo de ser contaminada pela burrice que as grandes redes sociais normalizaram. De não ser mais capaz de pensar com sabedoria e sensatez porque hoje as pessoas só sabem gritar e acusar. De perder a capacidade de ser atenta, de usar a lógica, de enxergar o detalhe. Morro de medo de ser burra.
Meu medo vem de perceber os sinais de que ninguém se importa com nada do que seja concreto. Eu li muita ficção especulativa para não ficar amedrontada com o rumo que as coisas estão tomando. O que mais suga minha vontade de viver é saber que preciso gastar 90% da minha energia com coisas que não deveriam ser importantes. Eu não quero me preocupar com taxa de crescimento, engajamento, algoritmo. Eu quero me preocupar em tentar comunicar algo relevante para as pessoas, não que eu me leve a sério o bastante para isso. Eu poderia usar melhor essa massa encefálica para algo realmente útil. Não deveríamos nos preocupar em como nos defender do que as redes sociais nos entregam, não deveríamos estar batendo boca e tentando lutar pela manutenção dos direitos mais básicos.
Só que é isso o que a gente tá tendo que fazer agora enquanto tenta pagar o aluguel. A realidade, para quem está exposto sem filtros à tecnologia, é difusa, mutável, irrelevante. Qualquer um cria e acredita na narrativa que mais lhe convém dentro do seu espaço digital e de sua cabecinha minúscula, oferecendo falsas esperanças que são fáceis de engolir. Por que me esforçar num mundo desse, eu me pergunto.
Almocei, engoli o choro e parti para trabalhar n’A Feira do Livro do Pacaembú no horário da tarde. Pelo menos nos livros eu ainda acredito. Não é exaltar superioridade, até porque existe muito leitor burro, mas o livro é uma das coisas que eu ainda enxergo como um alívio para o caos digital. Uma plataforma cada vez mais ameaçada pelo descaso na educação, que quer formar maquininhas de marcar opções em provas, e não leitores. Ameaçada pelo monopólio digital de um bilionário calvo, pela falta de valorização do livro e do mercado editorial (sim, é caro, mas é porque custa dinheiro fazer), pela censura de obras em escolas e bibliotecas, pelo monopólio da Suzano, pela falta de compra dos governos para distribuição em escolas, pela Inteligência Artificial, por picaretas do mercado editorial, pela insegurança financeira dos autores, etc. Eu queria poder trabalhar só com livros, mas acabei de elencar vários motivos que justificam porque essa não é uma das áreas que melhor paga.
Das 14h às 17h, fiquei no estande dando uma de livreira. Conversei com um autor que ficou interessado no que escrevi sobre Inteligência Artificial, com uma leitora desta newsletter sobre o que nos interessa nos livros, com uma cliente convencida por mim a ler O amigo, da Sigrid Nunez. Com o movimento mais calmo de um dia útil, a praça quente, ensolarada, aproveitei para ler O bruxo, de Maria Adelaide Amaral. Sentei na grama para fumar e tomar um capuccino, olhando o celular só para ver se haviam me pedido alguma coisa. Longe das telas, observando o movimento na praça, ouvindo o som que vinha do telão ao lado, interagindo com gente de verdade.
Da Feira, fui para o Shopping Frei Caneca, dia de É Nóia Minha? Ao vivo. É sempre um surto e uma surpresa, e dessa vez apareceram várias pessoas que admiro da TV e também das redes sociais. Eu fico na entrada do teatro falando com a galera da platéia que está chegando, recolhendo em bilhetinhos as suas nóias para serem lidas no palco. De novo, interação com gente de verdade, pegando o celular só para avisar a produção sobre os convidados que estavam chegando. É uma correria, mas é tão legal participar disso, andar pelos bastidores do teatro, ver tudo nos fundos do palco. Eram 22h quando finalmente voltei pra casa, os olhos já inchados de novo não porque chorei muito, mas porque não havia dormido mesmo. A crise da manhã sumiu, a cabeça voltou pro lugar, e tudo o que tive que fazer foi sair de casa e olhar pra fora.
Tomei meu remédio, dormi o melhor dos sonos e levantei no dia seguinte pronta para sair de novo. Foram cinco dias seguidos de Feira do Livro, a praça cheia de gente durante o feriado, gente interessada em ouvir os autores, em conversar com os livreiros, em dar um oi pra essa doida que as pessoas geralmente só veem na internet. Gente passeando com cachorro, com criança, colegas antigos se reencontrando, amigos numa rodinha bebendo. Um filhote de gato dentro do estádio, os ratinhos que saem para o gramado assim que escurece. Mesmo com o mundo pegando fogo fora dessa bolha privilegiada do Pacaembú, com o sarcasmo e cinismo que consome o espírito do nosso mercado editorial, a gente se divertiu. Riu da nossa desgraça, riu da desgraça que vem aí. Senti que nesse ano a Feira cumpriu melhor o seu papel de reunir as pessoas, e isso me deixou alegre, fez eu me sentir útil para alguma coisa.
Nos últimos dias da Feira, eu li Mitz: A sagui que não teve medo de Virginia Woolf, da Sigrid Nunez (tradução da Carla Fortino). É uma “biografia romanceada” de uma macaquinha que conviveu com Leonard e Virginia Woolf, escrita com a ajuda de cartas, biografias e documentos. Um livro sobre uma época em que uma nova guerra se anunciava, mas diferente de agora, as pessoas se comunicavam por cartas e telégrafo, e não por tuítes desconexos de um proto-ditador. Os problemas do final dos anos 1930 são os mesmos de hoje, mas lá a gente lutava com um inimigo que conseguíamos enxergar, e não contra uma montanha de dados armazenados em galpões gigantescos. Eu sou uma das últimas gerações a ter vislumbrado um mundo mais parecido com aquela época, e tenho um medo absurdo de nunca mais reconhecer o mundo naqueles termos.
Sair da conexão total nesses dias de livreira me salvou de afundar numa nova depressão e cometer um erro seríssimo na minha vida profissional. Me fez acreditar um pouco mais na minha utilidade como ser humano, que não é uma utilidade mercadológica. Me fez deixar as métricas das redes no lugar em que elas deveriam sempre ficar, de escanteio, fora do campo, um lixo a ser descartado. Um ruído incômodo que não preciso mais ouvir.
Acabou a Feira, voltei para a rotina normal com as mesmas reclamações de sempre, mas pelo menos se vontade de desistir.
Eu vou dar um curso
Gente, antes de seguirmos com esta edição, tenho um aviso importante: sim, vai ter curso meu na Escrevedeira, e vai ser sobre fazer conteúdo fora das redes sociais.





Conteúdo Além das Redes vai rolar em julho, a partir do dia 10, e vão ser 3 aulas via Meets para falar sobre escrever na internet livre dos algoritmos. Este curso é um convite para sair do piloto automático das redes sociais e estabelecer uma nova presença online — mais aprofundada e sustentável –, explorando outros modos de criar no digital sem depender das bigtechs e seus imprevisíveis algoritmos.
A proposta é experimentar caminhos alternativos, repensando o que produzimos e consumimos na internet com foco principal no chamado slowcontent e na construção de comunidades verdadeiras através de newsletters.
Aula 1 – Conteúdo além das redes
Por que as redes sociais não fazem bem para o seu conteúdo?
Uma visão realista sobre como a lógica das redes esvazia os conteúdos, usa indevidamente dados dos usuários e incentiva conflitos para promover engajamento.
Aula 2 – Escrever com o tempo a favor
O que é slowcontent e por que apostar nas newsletters.
Como produzir conteúdo sem a urgência exigida pelas redes, descobrindo caminhos para conseguir engajamento e tendo seguidores para além das redes sociais.
Aula 3 – Conteúdo com propósito
Polêmica dá audiência, mas será que sustenta o seu conteúdo?
Em tempos de IA, por que seu conteúdo merece atenção e no que ele se diferencia?
Um exame das armadilhas tecnológicas que prometem alavancar a audiência e estratégias básicas para se manter relevante em meio a tanta informação.
Esse é o meu primeiro curso sobre esse tema, então saibam que vocês serão minhas cobaias. Para se matricular, é só vir aqui no site da Escrevedeira.
Quero uma vida de loira platinada
Por Claudio Thorne
Boneco de neve
Na beira do rio, ao longo de alguns dias claros e quentes, troquei com a água. Ela, suave, leve e interessante, ia se movendo de acordo com os assuntos que eu propunha, e me devolvia, além do meu reflexo brilhando em sua superfície, o que eu entendi que eram assuntos parecidos como os meus, como se minha voz batesse de volta em seu contato.
Fiquei surpreendido. Era como se aquele reflexo, apesar de meu, fosse algum outro, e me senti muito à vontade para ir mais adentro. Após conversarmos ao longo de dias e tardes de Sol, decidi que gostaria de vê-la à noite. Então, às oito e trinta e cinco de uma sexta-feira de muita garoa, mergulhamos juntos. Ao longo do mergulho, a água me devolvia perguntas que eu um dia a fiz. “O que te faz viver?”, “Gosta de festas?”, “O que te fez parar de beber?”. Sei que não se pode baixar a guarda quando se está nadando sem vista à frente, mas nem passou pela cabeça que eu poderia me afogar.
Após o mergulho, decidi que dormiria ali, com ela ao meu lado. Porém, às duas horas da madrugada, vi a água congelar enquanto eu derretia. Meus olhos, brilhosos como jujubas enroladas em açúcar, bateram com seus olhos que agora estavam cristalizados, e me vi encarando um boneco de neve. Bonecos de neve, assim como água, são mágicos, mas existem apenas no eterno agora, porque não têm consistência para garantir o depois. Ele até poderia desmanchar e voltar a ser água algum dia, pena que eu congelei também.
Agora vocês sabem por que não teve newsletter na semana passada: não deu nem tempo pra pensar. Mas é bom eu dar uma folga aqui de vez enquanto, porque realmente não é necessária a minha presença toda semana na caixa de entrada de vocês. Aliás, devo falar sobre isso no curso: precisa de tanto conteúdo mesmo? Fica aí essa pensata.
Tá frio, significa que estarei imóvel nos próximos dias.
Tchau! FAÇAM MEU CURSO!
Olá Taize, lembrei quando te conheci pessoalmente na Feira do Livro do Pacaembu em 2023. Foi muito legal e a atmosfera presencial, mesmo comprando 01 ou outro livro, vale a pena pela experiência. Bom, espero que você consiga ficar bem pq, realmente, está tudo difícil e piorando a cada dia. O que fazer? Não sei. Talvez, fugir pelas montanhas. Enfim, rs. Farei o possível para fazer o seu curso e não devemos resistir. Nem que seja por teimosia!!!
Axé!
Okê Arô!
o mundo offline precisa ser preservado. pelo bem da nossa sanidade!