O maior desafio de Vale Tudo, a meu ver, é nos convencer de que a honestidade vence. Não sei como estavam os ânimos da galera lá em 1988 quando a novela estreou sua primeira versão, mas imagino que esse discurso fazia mais sentido do que hoje. Pelo menos minha família sempre acreditou no poder da honestidade e do trabalho duro para ascender na vida.
E eles ascenderam. Eu sou a primeira geração de Amorins e Odellis que dedicou sua infância aos estudos e às brincadeiras. Basicamente todos os meus tios e tias, assim como meus pais, tiveram que trabalhar na roça desde cedo. Parte da família continuou na roça, já a maior parte saiu dela. Arranjaram empregos em cidades maiores, passaram a viajar, construíram suas casas de alvenaria.
Eles passaram para mim todos esses valores do povo honesto e trabalhador, e eu sempre enxerguei nos estudos uma alavanca para uma vida melhor. Mas eu, como a maior parte dos millennials, dei com a cara no muro quando chegou a minha vez de “ascender". Claro que eu estou num lugar que minha família não ocupa, mas estou bem longe de ter a vida estável que eles conquistaram. Não tenho absolutamente nada no meu nome, e nem existe previsão de ter. Não tenho previdência privada para me aposentar com tranquilidade, não tenho casa própria, não tenho reservas e poupanças. Não tenho planos, também, do que fazer com o meu dinheiro no futuro, porque hoje todo esse dinheiro é utilizado para me manter viva diariamente.
Sou de uma geração que assistiu de camarote como o golpe passou a ser endeusado e abraçado por todas as camadas sociais, porque o golpe encontrou um terreno fértil na internet para se estabelecer. Impossível olhar para as big techs e para os influencers gigantes sem pensar em todos os golpes que nos deram para chegar no topo. Vale enganar seguidor com jogo do tigrinho, vale roubo e venda de dados, vale tudo. Não tem como acreditar em honestidade em 2025 do jeito que ela é colocada na novela, porque essa honestidade representa uma ingenuidade que acarreta em ser feito de otário. E ninguém quer ser otário.
Assim que Maria de Fátima apareceu na minha telinha, entendi o modo de pensar dela. Claro que ela é burrinha, deslumbrada, preguiçosa, mau-caráter, mas ela sabe que a honestidade que sua mãe tanto propaga e se orgulha de ter — como se isso a transformasse num ser iluminado — é um atestado de miséria. Maria de Fátima tem tanta certeza de que seria passada para trás se fosse honesta que ela faz justamente isso com a própria mãe: lhe deu uma rasteira, uma prova do que ela tenta fazer Raquel entender. Mas ela mesma ainda é ingênua demais para perceber o golpe que também receberia ao conhecer César.
Foi quando Odete Roitman deu o ar da graça que eu me senti ainda mais torcendo pelos vilões do que pela mocinha chata de Raquel. Não vamos ignorar que Odete é, sim, racista, xenofóbica, nojenta. Mas de 10 frases que saem da boca de Odete, pelo menos 6 reverberam em mim como corretas. Principalmente no que diz respeito aos seus filhos.
Quando Odete chega na casa de Celina, critica logo de cara os gastos excessivos e desnecessários da irmã, porque ela sabe que o dinheiro da herança de seus casamentos não será eterna. Ela não suporta o coitadismo de Heleninha que busca absurdamente uma aprovação da mãe, o amor que ela jura não existir, mas quer que exista. Afonso parece ser um vagabundo que usa do seu dinheiro para ter a difícil vida de triatleta — coitado dele, acordando 4 da manhã para treinar como se isso fosse uma obrigação. Enfim, não tem como eu ser simpática a esses adultos riquinhos com todos os privilégios do mundo que ainda vivem debaixo da asa dessa mãe que tanto odeiam. Não há terapia que salvará Heleninha enquanto ela desejar algo que jamais vai receber.
É óbvio que Maria de Fátima e Odete Roitman não são exemplos a serem seguidos, até porque vamos evitar cometer crimes. Mas elas são práticas, não caem no chororô barato de quem apela para o sentimentalismo, a elevação moral e os laços de família. Essa praticidade vem da noção de que não é a honestidade e o trabalho duro que fazem uma pessoa enriquecer na vida. É o golpe. Maria de Fátima tentou dar o golpe mais comum da atualidade, que é ser influencer, e ao ver que isso dá trabalho demais — e ela não vai se sujeitar ao trabalho —, partiu logo pro golpe mais antigo de todos: o matrimônio. Mesmo golpe que deu a Odete a sua riqueza.
No futuro da trama, Raquel vai ficar rica com o seu esforço e a sua honestidade. Algo que acontece na vida real, mas muito raramente — e vai saber quantas pequenas contravenções foram feitas inicialmente para dar aquela alavancada nos negócios, coisas que sempre ficam debaixo do tapete. Estamos falando de uma novela, e coisas maravilhosas acontecem em novelas. Aparece uma herança surpresa, um ajudante milagroso, você é recompensado pelo seu trabalho duro… Só que hoje, é mais fácil acreditar na Terra Plana do que na meritocracia, né? E é aí que está o problema da honestidade de Raquel: é esse desejo de estar sempre ética e moralmente certa que a levará a cair nos golpes que virão.
Então toda vez que Raquel fala sobre como é honesta, eu escuto o quanto ela é otária. Lembro das vezes em que fui otária por querer ser honesta. Vejo como meus amigos que trabalham muito e são talentosos de verdade têm menos visibilidade e dinheiro do que vários trambiqueiros que estão nesse mercado — tanto no da influência quanto no mercado editorial. São raras as pessoas desse meio que vieram de baixo e conquistaram um lugar de destaque única e exclusivamente com o seu trabalho honesto. A maioria ou já nasceu em berço de ouro, ou soube dar o golpe em alguém com berço de ouro. E o golpe não é só no casamento: é o puxa saco do chefe, é o que copia as ideias do coleguinha, é o que alimenta e afana o ego de quem tem dinheiro, e que adota as suas práticas golpistas para subir os degraus da escada financeira e social.
Aí fica bem difícil sentir simpatia pelas personagens que escolhem ignorar a maldade do mundo e se defender delas com a mesma esperteza com que as vilãs cometem os seus absurdos. Não tem como eu torcer para uma mulher intelectualmente plana, que não é capaz de entender as zonas cinzentas das situações — “quem mente rouba, e quem rouba mata", repete sempre Raquel. A gente torce pelas vilãs porque elas sim apresentam complexidade e a praticidade que a vida exige da gente de ter que ficar sempre esperta para não ser feita de otária. Ninguém que chama Mary of Faty ou Odete Roitman de divas, lobas, porque elas são mesquinhas. É porque elas parecem mais interessantes mesmo do que o pensamento infantil de Raquel.
Outras coisas
Oh um exemplo prático do meu texto: como que a organizadora da Flipoços está há 20 anos fazendo esse evento sendo uma porta? Semana passada rolou um caso de racismo numa das mesas da Flipoços, em que a filha de uma amiguinha da organizadora totalmente abublé das ideias proferiu falas racistas contra o escritor Wesley Barbosa e gordofóbicos contra um funcionário de uma livraria. Advinha qual dessas pessoas têm mais dinheiro, só advinha. A Jéssica Balbino também teve experiências infelizes com essa mulher, que voltará ano que vem com seu evento como se nada fosse.
A Camilla Feltrin fez uma lista imperdível de 35 lugares para passar mal em São Paulo:
Essa canetada do Élvio Cotrim sobre a elite intelectual de São Paulo — de alguém que não veio do longínquo e pobre bairro do Tatuapé.
E a Estação Liberdade que usou IA na cara dura na capa de Kitchen? E ainda tentou fingir que não com textos claramente gerados pelo chat gptrouxa? Olha o golpe mais uma vez…
E pra encerrar, o episódio de Abril do podcast tá aberto pra geral. Aproveita pra ouvir inteiro e, se gostar, assine a newsletter por R$ 10! Todo final do mês tem um episódio exclusivo para os apoiadores. :)
Quero dizer obrigada para todo mundo que mandou um pensamento positivo para o Horácio ou uma mensagem de carinho depois que ele se foi. Já se passou uma semana sem ele, e a casa realmente ficou vazia. Sempre vou amar esse bichinho doido. <3
Semana passada a coisa foi intensa, muito trabalho, muito choro, e um pulo pela primeira vez em Recife à trabalho que me devolveu o ânimo de viver. A gente perde, mas coisas boas continuam acontecendo. Essa é a graça da vida, né?
Fiquem com meus dois outros nenéns que, ultimamente, não se desgrudam:
Tchau!
Aplaudi a análise de Vale Tudo. Raquel me irrita tanto que decidi que se achasse uma mala milionária lavaria tudo.
Talvez seja a primeira novela q eu torço pra mocinha (Solange) não ficar com o mocinho (Afonso). Um mala encostado que não sabe trabalhar.
E se o discurso de honestidade tá chato nessa versão, vc tem que ver na primeira, q era com a queridona da ex ministra bolsy...o discurso, a atuação, a voz estridente.....um c*