Eu não conhecia o termo “heteropessimismo” até ontem, quando a Marie publicou essa edição da Não prometo nada. Eu me identifiquei, de início, com o termo, até chegar nessa parte:
“Gosto muito de um artigo de 2019 da Asa Seresin definindo o heteropessimismo por um profundo desgosto na performance da heterossexualidade e um constrangimento generalizado ao se identificar com ela.”
Sim, eu faço piada com o fato de ser uma mulher hétero que tem que relevar vários comportamentos masculinos para conseguir uma transa satisfatória, mas pelo menos eu ainda vou atrás de um tchacatchaca na butchaca (ai, que saudades desse termo héterotopíssimo popularizado nos anos 1990 pelo apresentador Ratinho). O heteropessimismo vai além disso: é evitar qualquer relação, sexual ou afetiva, com um homem.
Eu já estava pensando em falar sobre casamento e afins depois de ver a notícia de que o governo Russo proibiu a “propaganda anti-natalidade” no país, que consiste em não poder abordar de forma pública o desejo de não ter filhos. O país, assim como outros do oriente, enfrenta uma crise de natalidade. As mulheres não querem ser mães, ou pelo menos não querem ter muitos filhos. Eu, como alguém que sempre deixou bem claro que a maternidade é o último dos meus desejos — na real, é o meu primeiro pesadelo —, fiquei bem indignada com essa notícia. Estamos voltando para um passado em que as mulheres eram obrigadas a ter filhos para “salvar” um sistema de governo falido? Parece que sim.
Não ter filhos, aliás, é um dos objetivos principais do Movimento 4B, da Coreia do Sul, que a Marie cita no texto e que vem encontrando adeptos no ocidente. Pode parecer muito radical trazer essa ideia pra cá, já que o machismo sul-coreano é o principal agravante: os caras lá querem de verdade que suas esposas larguem sua liberdade para se tornarem mães e donas de casa. O 4B é uma resposta a essa visão ultrapassada de que lugar de mulher é na maternidade. Uma resposta mais justa, ao meu ver, do que a resposta dos incels ao feminismo. Porque de um lado temos homens infantilizados que acreditam que merecem alguma coisa das mulheres, e do outro temos mulheres que não aguentam mais serem tratadas como servas dos homens.
Desde sempre eu reneguei meu sistema reprodutório por não querer fazer parte dessa estrutura social. Primeiro, porque não queria sentir a dor e as mudanças do corpo. Conforme cresci e observei o mundo, a decisão se tornou mais política. Por mais “parceiro” que o homem seja, a maior parte do peso ainda recairia sobre mim. Assim como os julgamentos e as críticas. E este ainda não é um mundo que trata as mães do jeito que elas merecem — há muita violência obstétrica, há muitos bloqueios sociais e políticos para que as mães circulem livremente pelas cidades, falta estrutura para amparar mulheres com filhos. Então valeu, útero, mas eu não quero fazer uso de você.
Eu não lembro agora qual famoso disse que tinha o sonho de ser pai, mas até o filho nascer ele não fazia ideia do que isso significava. Ok se ele fosse um pai adolescente, porque aí não teria como ter pensado nisso mesmo. Mas era um adulto, alguém que deveria ter feito dezenas de reflexões antes de tomar a decisão de leitar dentro. Enquanto a parceira com certeza já tinha pensado muitas vezes em todas as implicações da gravidez, e deve ter aplacado todos os seus receios pensando no amor, na alegria e na união que uma nova vida traria para a sua família. Percebe a diferença? Claro, tem muitos homens que sabem o que ser pai significa, mas precisamos lembrar que não vivemos numa realidade em que todo cara é um grande paizão. Não num país com altas taxas de abandono parental.
E aí chegamos a outra renúncia que fiz que me definiria como heteropessimista: a descrença no amor. Me apaixonei poucas vezes na vida, e em todas elas eu senti a rejeição e a quebra de expectativas — que é o normal, né. Por culpa minha, claro, e por culpa do outro. Mais por culpa minha, acho. Eu fui uma jovem romântica que sonhava com um namorado bonito, que me exaltasse e, principalmente, me enxergasse como uma igual. Que me tratasse como brother na rua e puta na cama, para ser mais exata. Sempre com um pé atrás, pois as comédias românticas que mostravam a protagonista resistindo aos avanços do interesse amoroso me ensinou a ter cautela. E também por ter uma visão machista sobre ser uma mulher de respeito, cuidar para não ficar “falada”, quando na real eu queria mesmo era tascar uns beijos em alguém.
Demorou pra deixar todas essas ideias de lado: de que eu me casaria com meu primeiro namorado, de que eu deveria canalizar todo o meu desejo em um único cara, de que não tem nada de errado em aceitar meus desejos sexuais fora de um relacionamento. No fundo, o romantismo que cultivei na adolescência atrapalhava minha liberdade. Não cabe mais, pra mim, buscar um relacionamento tradicional com um homem. Mas isso não significa que eu vou rechaçar os homens por completo. Aí está o que me diferencia das heteropessimistas.
Eu não acredito mais nos relacionamentos do jeito que são tradicionalmente colocados, mas acredito que há outra maneira de se relacionar. Eu não desisti. Fica difícil, sim, ter esperança atualmente com o que a gente vê de relatos por aí, com essas notícias de países que, antes de tratar as mulheres como gente e nos ouvir, preferem criar incentivos fiscais para ter filhos ou proibir que se fale contra a maternidade. Eu não vejo esforço dos nossos políticos homens em melhorar as condições de vida da mulher em todos os âmbitos — afinal, toda semana alguém quer tirar uma lei que já nos foi garantida. E enquanto a coisa estiver assim, acho bem certo que as mulheres se recusem a viver esse tipo de vida — uma vida imposta culturalmente, socialmente, religiosamente, vocês entenderam…
Só que a gente não deve se isolar e criar uma sociedade distópica sem homens (embora eu fantasie muito com isso, confesso). A crise está aí. Queremos nos relacionar, mas não sabemos direito como. Queremos ter esperança nos homens, mas não temos muitos exemplos de que, um dia, o machismo seja erradicado. Queremos viver o amor, mas será que existe mesmo esse amor idealizado numa realidade cada vez mais baseada em performance de sucesso? Queremos sexo, mas estamos assistindo a uma nova onda de conservadorismo se levantar entre os jovens justamente por causa de todos esses problemas levantados acima.
E eu, sinceramente, acho que as pessoas ainda buscam se relacionar da maneira errada. Ainda procuram uma “salvação” para suas vidas íntimas em outra pessoa, projetam suas inseguranças em cima de um parceiro e o sufocam. Tomam a decisão de casar e ter filhos para fazer parte do que a sociedade determina como certo e moral. Meu pessimismo não é só hétero: é meio que geral. Não é uma questão de evitar a decepção, é mais de encontrar uma maneira realmente equilibrada de viver com o outro. É é atrás disso que eu estou indo.
Dicas e tal
Então está mais do que recomendado ler o texto da Marie sobre heteropessimismo e as armadilhas que há por trás disso. Acho que ela toca num ponto muito importante, também, que é o individualismo, e eu penso muito sobre isso porque me considero egoísta — talvez por querer me priorizar e por estar muito acostumada a viver sozinha no meu espaço, algo do qual jamais quero abrir mão. Mas há uma grande diferença entre cultivar meu lugar e me isolar totalmente das relações, né? É uma questão de encontrar esse equilíbrio.
Vem ler esse texto da Lyara sobre Ainda estou aqui e a herança que a ditadura nos deixou: a falta de justiça, e por que nos revoltamos contra as netas da ditadura.
Ainda sobre esse filme que eu não vi, tem esse vídeo do Thiago em que também fala desse pézinho atrás que ficou com o filme por causa de algumas escolhas da direção. Tudo muito bem fundamentado — e sinceramente? Tenho preguiça da galera Letterbox.
Essa reportagem da The Vanity Fair sobre a “musa" de Cormac McCarthy, que só foi “descoberta" após a morte do autor, e que gerou muita discussão por causa de como esse relacionamento começou: ele um escritor de 42 anos, ela uma adolescente de 16. Muita gente criticou o autor da matéria porque ele estaria “glamorizando” o abuso, mas as coisas são bem mais complexas do que isso — e o pessoal tem problema para entender certas complexidades. Mas é uma história digna de uma ficção.
É isso, galera. Espero que tenham apreciado essa edição. E se você curte o que eu escrevo e está com a vida financeira em dia, considere apoiar o vagabunda com R$ 10 mensais para ter acesso ao podcast exclusivo.
Dose dupla de gatos para encerrar a news de hoje.
Tchau!
Nossa, esse texto bateu forte aqui. Especialmente a parte onde você diz que apesar de pessimista, ainda acredita no amor possível. Acho que a hiper conectividade que vivenciamos influencia negativamente em encontrar homens legais. O Machismo deixou homens infantilizados e agora ignorantes, conduzidos por uma ótica algorítmica.
"Ainda procuram uma “salvação” para suas vidas íntimas em outra pessoa, projetam suas inseguranças em cima de um parceiro e o sufocam. Tomam a decisão de casar e ter filhos para fazer parte do que a sociedade determina como certo e moral. Meu pessimismo não é só hétero: é meio que geral." já me senti visto como essa "salvação" , e também já busquei isso no outro, e acho mto difícil essa corda bamba