Fiquei mais de um mês lendo Domínio, de Tom Holland (Record, tradução de Alessandra Bonrruquer), que já citei aqui algumas vezes. No livro, Holland conta como o cristianismo se espalhou e dominou a maneira de pensar ocidental. O Estado é laico, mas o Estado sempre caminhou de mãos dadas com o cristianismo. Se hoje temos leis, noções de solidariedade, dever, regras, muito disso vêm do pensamento religioso que incutiu essas ideias em seus fiéis. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo arrasou o mundo com perseguições, guerras e clérigos mais gananciosos do que o Elon Musk, que transformaram religião em poder, e poder em riqueza.
Meu ranço com a Igreja Católica vem principalmente disso: da instituição Igreja, de como ela sempre oprimiu mulheres, minorias, e fundou um mundo calcado numa falsa moral para satisfazer aqueles que pensam nas pessoas como recursos para trabalho, e não como seres pensantes. Pra mim, essa igreja tem muita culpa no atraso que ainda vivemos em questões como o aborto. Dia a dia a gente é ameaçada por homens, pela religião e pelo Estado que querem que as mulheres voltem a ter um único papel: ser mães. Em uma sociedade em que a população cristã ainda é enorme e influente, vai ser difícil ver algum avanço nos direitos das mulheres porque muitos acreditam que Deus as fez para isso.
Aí eu estava vendo TV esses dias e apareceu uma propaganda da campanha do Boulos desmentindo a velha história de que ele é um invasor de residências, e no fim do vídeo, mostrava um morador de rua dormindo na Praça Roosevelt. Na hora me veio um pensamento: o eleitor de direita que se diz cristão nunca vai se sensibilizar com esse tipo de imagem. E isso vem do próprio pensamento cristão que ele preserva: o de que Deus castiga aqueles que saíram da linha.
O cristão de bem não se importa com 80 mil pessoas vivendo nas ruas de São Paulo. Para eles, essas pessoas mereceram. São drogadas, são bandidos, fizeram alguma coisa de errado para estarem ali, vivendo como um animal. Pior que um animal. Porque ser cristão, hoje, é unir a fé com o desejo de riqueza. Porque se alguém tem dinheiro, é porque o fez por merecer — mesmo que tenha sido através de algum “golpe”. Se o dinheiro entrou, é porque Deus quis. Por isso ser pastor, hoje, é lucrativo.
Em Domínio, Tom Holland mostra como a Igreja Católica sempre se escorou na caridade para justificar sua existência e opulência. Pois é, a noção de solidariedade trazida pela religião tem um papel nem tão solidário assim. Os padres e freiras dizem “precisamos da sua doação para ajudar aos pobres. Precisamos ter amor para com os pobres, Deus ama a todos e perdoa todos os nossos pecados no final”. E assim, não existe riqueza sem pobreza. Para o rico existir, ele precisa de milhões de pobres sustentando a máquina que gera a sua riqueza. Para a Igreja cumprir com seu papel solidário, ela precisa de gente pobre.
A bondade de Deus é ambígua porque, se alguém está sofrendo em vida, é porque está pagando algum pecado. O papel do cristão é estender a mão, mas não muito. Estender só o mindinho, afinal, eles, os bem aventurados, seguem o roteiro direitinho do que é ser um bom cristão. Se eles têm dinheiro na conta para pagar pela casa, pelo carro, pela escola particular dos filhos, é porque mereceram. Não porque pagam o mínimo para os seus funcionários. E para expurgar esse pecado, transforma-se riqueza em presente divino. E cria-se o teatro da caridade, em que o cristão expurga o pecado mais ignorado, o da ganância, com um ato de pífia bondade: doar alguns milhares para uma ONG ou igreja.
Então é difícil um candidato falar que quer dar casa para a população de rua porque, na cabeça do cristão médio, ele está recompensando o pecador. Mesmo que o único pecado dessa pessoa tenha sido nascer pobre. Pra essa gente, a população de rua é a prova de que Deus castiga quem sai da linha, sendo que essa linha é traçada de um jeito tortíssimo, que coloca obediência, moral retrógrada e o desejo por dinheiro e poder como objetivos principais da existência humana.
Sim, a Igreja Católica trouxe para o ocidente noções de humanidade que antes poderiam não existir (ou existiam de outra forma), como a bondade, a moral e a ética. E como a caridade, que sem ela, os pobres estariam ainda mais vulneráveis. Mas a partir do ponto em que religião e fé viraram armas para chegar ao dinheiro, como o Vaticano bem fez, e como as igrejas neopentecostais vêm fazendo, toda essa noção de bondade vem sendo usada para manter os papéis de opressor e oprimido. Do pecador e do cristão. Do rico e do pobre. De quem é agraciado por Deus e quem é punido por ele. Porque quem é rico, é porque Deus deu. Quem é pobre, é porque mereceu.
Então pra essa galera, imagens de policiais descendo o cacete numa comunidade pobre é entretenimento puro, porque estão vendo seu Deus punindo os vagabundos que merecem a vida que têm. Esse pessoal não se sente enojado ao ver o vídeo de uma família sendo agredida por PMs no velório do filho de 18 anos morto pela polícia. Essa galera quer manter a fantasia religiosa em curso, e justiça social seria o fim de suas crenças.
Por isso Nunes está na frente nas pesquisas. Por isso Boulos mete medo no cidadão mediano que acredita em Deus e na meritocracia — que são meio que a mesma coisa, não existem. Por isso o povo tem medo de sair da linha moral (no sentido de relacionamentos e sexo, pra dar um exemplo) e seguem querendo perpetuar a ideia de que mulheres devem servir aos homens. Isso tudo, junto com a benevolência, também chegou a nós através da religião. Não que o mal não existisse antes da Igreja Católica, e que o bem só foi restaurado por causa dela. O erro está justamente nesse pensamento. Mas que hoje a religião vem contribuindo com o colapso humano no sentido de se organizar socialmente, ah, isso é inegável.
Martinho Lutero tentou desvencilhar a religião da Igreja Católica gananciosa de sua época, mas não acabou com a tendência humana de transformar tudo o que deve ser belo em uma experiência horrível.
Outras coisas
Hoje saiu a notícia de que morreu o Antônio Cícero, que nunca li (nunca fui de poesia), mas pô, tem que falar dele aqui. Me emocionou muito a carta de despedida que ele escreveu, pois a morte foi assistida, eutanásia na Suíça. Cícero estava com Alzheimer e, como diz na carta, não queria viver debilitado. E isso vem muito de encontro com o que eu penso sobre a morte, como já escrevi aqui antes. Enfim, tá aqui a carta.
Mais uma profissão ameaçada pela IA: o psicólogo. Esse post aqui do André Carvalhal falando da galera do TikTok dizendo que faz terapia com o ChatGPT me deixou putaça. O ser humano quer ser muito ignorante mesmo, e tá trabalhando duro pra isso. E digo sempre: QUEM USA IA É JACU.
Trabalhando hoje, confundi as datas e pensei que algo programado para novembro era para acontecer neste fim de semana. Ou seja: minha cabeça já tá em full mode FINAL DE ANO. Mas tem coisa pra caralho pra acontecer ainda em 2024, então vamos que vamos.
Obrigada por lerem mais uma edição do vagabunda, e semana que vem deve rolar podcast comentando os assuntos do mês — e vou contar uma historinha que me aconteceu que me deixou muito indignada. Então, se você tem interesse em ouvir, é só ser um apoiador pago da newsletter. Apenas R$10 por mês.
E para encerrar: Fortunato acompanhando a etiquetagem das mantas Coberta de Razão do Imaturos.
Tchau!
E eu aqui como assim o Homem-Aranha lançou um livro?
Oi, Taize! Impecável seu texto, a discussão trazida em toda a obra do Holland (ele fala disso também no Milênio, mas refina muito no Domínio) sobre a influência da Igreja Católica em todas as esferas sociais é muito atual. Só uma correçãozinha corporativista: o livro foi publicado pela Record, e não pela Companhia das Letras. :) bj!