sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #104
Olá, vagabunders!
Mais uma newsletter chegando pra vocês, e hoje vou falar sobre tecnologia e gente ruim, com as famosas dicas de leitura, podcasts, vídeos e o que mais tiver.
Na última edição que mandei, recebi um e-mail do Substack avisando que alguém tinha me dado dinheiro aqui. Essa newsletter é gratuita e sempre será, e eu nem sabia que tinha esse botão de apoio, apenas recebi uma grana surpresa. Então assim: obrigada demais! Quem quiser doar para esta produtora de conteúdo, é só ir ali em Pledge Your Support.
Então vamos para a news de hoje.
Vamos avançar… para pior
Futuro, futuro, futuro… O futuro é uma grande obsessão do ser humano, uma fantasia alimentada pela incerteza. Ao pensar no futuro, a gente parte da ideia de que, quando ele chegar, as coisas serão diferentes e melhores. E serão porque ela, a TECNOLOGIA, vai levar a gente para essa utopia linda e conectada.
Cada avanço tecnológico vem para melhorar a nossa vida, pelo menos na teoria. Pelo menos no discursos marketeiros das big techs. No Facebook, você vai facilmente se conectar com seus amigos e acompanhar suas vidas, gerando mais movimento na sua vida pessoal. Na Amazon, você pode comprar qualquer coisa que vai chegar no dia seguinte na sua casa. No celular, você tem toda a sua vida e trabalho nas suas mãos.
Certamente a tecnologia ajudou a gente em grandes avanços, e eu não estaria aqui falando com vocês se não fosse ela. Queria eu ser assim alienada para pensar que tudo isso veio para o nosso bem. Mas não veio. Não se levarmos em conta o que as empresas de tecnologia priorizam: o lucro. Capitalismo, né? Não dá para esperar outra coisa.
No artigo “Will A.I. Become the New McKinsey?", no The New York Times, Ted Chiang escreveu sobre como a inteligência artificial trabalha nesses moldes. E para fazer isso, a compara com a McKinsey, uma empresa de consultoria cujo trabalho é, basicamente, fazer o trabalho sujo das empresas, como realizar demissões em massa com a profundidade emocional e responsabilidade de um pires. A McKinsey é um belíssimo exemplo do capital bruto, um serviço feito para que as grandes empresas lavem as mãos ao tomarem decisões que prejudicam seus funcionários. “Não fui eu que demiti, não queria, mas nossa consultoria disse que é necessário…". Para Chiang, são grandes as probabilidades da IA virar uma espécie de McKinsey, usada para piorar as relações de trabalho, não melhorá-las. “A inteligência artificial é uma ameaça", escreve Chiang, “porque ela serve ao capital".
E esse capital está no cerne do que é o desenvolvimento tecnológico. Sempre esteve. Quase tudo o que usamos hoje, tecnologicamente falando, foi criado por um homem branco enfurnado na sua garagem, sem amigos ou com amigos tão “deslocados” da sociedade quanto ele. Homem que veio ao mundo com a noção deturpada da liberdade norte-americana, em que militam por uma liberdade sem limites — que a gente sabe pra onde isso leva. Homem afundado até as orelhas na areia movediça do capitalismo. Suas criações não foram feitas para melhorar a vida do usuário ou diminuir nossa carga de trabalho. Por mais que falem isso ao lançarem um produto novo no mercado, melhorar nossa vida é o último objetivo das big techs. O negócio é dinheiro, como sempre.
Ted Chiang diz que, para uma tecnologia ser realmente benéfica, ela deve ser criada pensando nos usuários e na segurança deles, mas sabemos que é ingenuidade esperar isso de um ambiente criado e dominado por homens brancos, em sua maioria, que chafurdam na imagem de “esquisitão sem trejeitos sociais". Em A máquina do caos, Max Fisher explica muito bem essa cultura da personalidade que desde sempre esteve no cerne do que é o Vale do Silício. O self-made-man nerd, que não sabe falar com garotas, que por serem párias da sociedade, engajam em discursos violentos para mostrar que são transgressores, e não pobres coitados. Que usam da excentricidade de seus discursos e comportamentos para pagar de gênio — e todo mundo compra essa performance, porque “olha como ele é inteligente, e daí se é um cuzão?".
A ideia dos criadores da internet, desde o começo, era ser essa coisa auto-regulada, feita pelos usuários para os usuários, sem amarras com outras instituições. A utópica ideia do conteúdo livre e gratuito — claro que nunca pensaram nos artistas ou outros criadores de algo quando vieram com essa filosofia. O que seria lindo se não fosse o capitalismo e o que está por trás, de verdade, dessa ideia de “internet livre". E aqui vou citar o Fisher pois ele descreve isso muito bem:
“Mais do que apenas gênero ou raça, esse era o arquétipo rigoroso em torno do qual o Vale projetou seus produtos: o homem geek, implacável, lógico, misantropo e branco. Durante boa parte da história da área da tecnologia, essa predileção afetou poucos além das mulheres e minorias que lutavam para aguentar seu ambiente de trabalho. Mas, com o advento das redes sociais, a indústria começou a embutir seus piores vícios em empresas que contrabandearam esses excessos — o chauvinismo, a cultura do assédio, o majoritarismo disfarçado de meritocracia — para a casa e a mente de bilhões de consumidores.”
E é essa filosofia do homem-geek-branco-misantropo que ainda é celebrada entre os grandes da tecnologia. Ainda é o exemplo-mor de como ser um homem de sucesso nessa área. Ingênuos que acham que qualquer avanço tecnológico é benéfico e que têm a chance de, um dia, serem donos de uma grande empresa com suas ideias “inovadoras” se alimentam das biografias de Steve Jobs e Elon Musk procurando emular comportamentos desses caras porque, se eles são assim e atingiram o topo, eu também consigo. Lembro muito bem da mudança de comportamento que aconteceu com um chefe meu quando trabalhei numa startup depois dele ler a biografia do Quico dos Foguetes: de alguém que queria o bem-estar de quem trabalhava para ele, o cara passou a se fazer de excêntrico que muda de ideia para ideia genial 10 vezes ao dia e infernizava todo mundo. Na cabeça dele, ser assim significava sucesso. Na dele e da maioria que trabalha nessa área.
O que Ted Chiang escreveu no seu artigo faz todo o sentido. Não dá para abraçar a Inteligência Artificial como a grande resposta para o futuro do trabalho porque ela não foi feita pensando nos trabalhadores. Ela foi feita visando o lucro. Como disse Thiago Guimarães em um vídeo (que agora não lembro qual foi, perdão), vivemos no momento da “vida horrível, tecnologias imbecis", porque nada do que surgiu até agora transformou a nossa vida em algo “melhor”. Nada nos fez “trabalhar menos", apenas mais, e com medo de que nosso trabalho será precarizado a todo momento. Está tudo no lucro. É só ele que importa. O discurso das big techs de que seus produtos são criados para dar mais poder e qualidade de vida às pessoas não passa de uma grande falácia.
Quando eu era uma jovem internauta, sempre olhei para a internet como uma grande possibilidade, e que se ela não era apreciada por alguém, é porque a pessoa usava do jeito errado. A experiência, porém, mostra o contrário. Não importa o quanto a gente tenta manter nossas timelines saudáveis e realmente interessantes, nós apenas não conseguimos. E não conseguimos porque tudo isso foi criado em uma filosofia cagada criada por gente que se acha mais importante do que todos os outros. O dinheiro é mais importante, e o homem branco geek é o grande deus da tecnologia. Nesse meio, sequer pensam que outras pessoas (mulheres, negros, enfim, qualquer coisa que não seja o homem branco hétero) têm suas vidas ameaçadas constantemente através das ferramentas que criaram, seja pela precarização do trabalho ou pelos ataques que sofrem na internet.
Então não, não dá para olhar para a tecnologia, as redes sociais, a inteligência artificial, com a crença de que isso irá salvar o planeta e melhorar nossas vidas. Primeiro porque a maioria das pessoas sequer tem acesso a isso. Segundo, porque a raiz dessas criações está fincada num poço de chorume. E enquanto isso for a grande representação do avanço tecnológico no mundo, a visão do futuro, esse futuro só vai piorar.
Para ler
Ou ver. Já que citei Thiago Guimarães acima, quero deixar aqui o vídeo mais recente dele em que fala de Succession e de como ricos não são especiais porra nenhuma.
E falando da série, achei bacana esse artigo do Washington Post falando sobre quiet luxury, que vem sendo tão falado por aí no mundinho bilionário da moda.
Interessantíssima essa história aqui sobre dois irmãos gêmeos que eram ginecologistas e morreram de forma estranha. É um texto de 1975 que explora a personalidade estranha e a morte dos dois.
Muito gostosinho esse texto da Gabi Barbosa sobre cafeterias e com dicas de cafés para ir em São Paulo. Me deu até vontade de ir num cafezinho ficar lendo — algo que eu fazia com mais frequência antes da pandemia.
“No excelente relatório do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da UFRJ é possível entender como as Bigs Techs utilizam de seus privilégios e dominação de mercado para propagarem ideias, influenciando negativamente os usuários em prol de seus próprios interesses comerciais.” Texto da Thais Nunes falando sobre as big techs e o Complexo de Frankenstein que conversa muito sobre o que falei no texto de hoje.
Outras dicas
Diana Passy, fera do mercado editorial e minha amiga pessoal, lançou uma newsletter para responder suas perguntas sobre esse meio. Assine aqui.
Outra amiga pessoal, a Jéssica Correa, que também tem newsletter aqui, lançou o podcast Entre um chocolatinho e outro, e o primeiro episódio fala sobre desejo e psicanálise.
The Death of Late Night TV, vídeo bem interessante falando sobre o estado atual desses programas de entrevista e como eles estão perdendo audiência — talvez até para o YouTube, onde acabamos assistindo cortes desses programas.
Xepa do Engajamento
Escrevi sobre Rita Lee e “Ovelha Negra” na Associação dos Sem Carisma da última semana.
E gostaria de lembrar que a leitura desse mês no Clubize é Elizabeth Finch, do Julian Barnes. Para participar dos encontros e do grupo no Telegram, é só assinar por R$10.
É isso, gente. Até a próxima!
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<3
Excelente!