sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #131
Olá, vagabunders!
Tudo bem com vocês? Estou aqui, em plena terça-feira de Carnaval, escrevendo a newsletter da semana. Antes de ir para o texto (que não será exatamente um texto, mas sim pequenos comentários sobre minhas últimas leituras), quero falar de uma novidade importante nesta newsletter.
Agora, além dos textos semanais gratuitos, o Vagabunda terá um podcast mensal para os assinantes pagos. É a maneira que encontrei de monetizar o conteúdo daqui (já que publicidade em newsletter ninguém quer fazer, as marcas ignoram que existem coisas além do Instagram) sem restringir a visibilidades dos textos. Porque, ao mesmo tempo em que poderia fazer algumas edições fechadas, eu não gosto da ideia de menos pessoas lerem por causa do paywall, e eu sei que nem todo mundo vai poder assinar.
Todo o final de mês, os assinantes que contribuírem com R$10 ou mais vão receber um podcast do Vagabunda em que vou falar mais sobre os temas que tratei aqui na newsletter, fazer um apanhadão de acontecimentos importantes (ou não) do mês e ficar falando groselha para ajudar vocês a pegarem no sono quando a insônia bater. Uma coisa meio Santa reclamação de cada dia, o finado podcast, uma coisa meio comentarista da internet.
Para você ter acesso a esse podcast exclusivo, é só vir aqui em Manage Subscription e selecionar o plano que você quer assinar (mensal ou anual, ou, se fores um mecenas, o plano fundador). Mas para incentivar vocês, tá rolando desconto de 20% na assinatura mensal para quem se inscrever até o dia 29 de fevereiro.
É isso! Tô animada para o primeiro episódio, já tô juntando vários temas para comentar.
Agora vamos para o texto.
Gente querendo escapar
Hoje quero falar das minhas últimas leituras, e enquanto olhava para a pilha de livros lidos em janeiro e início de fevereiro, percebi que essas três obras têm uma característica em comum: gente querendo escapar. Escapar de coisas diferentes, com realidades diferentes, mas mesmo assim, fugir.
Fugir de uma ameaça, de uma prisão, de um desconforto. O primeiro deles é Em algum lugar lá fora, de Jabari Asim (Instante, tradução de Rogério W. Galindo), um romance sobre um grupo de amigos escravizados, presos em uma fazenda no sul dos EUA durante os anos 1850. William, Cato, Margaret e Pandora possuem diferentes funções na fazenda experimental Placid Hall, mas todos vivem sob o mesmo terror de seus captores. É pelos seus pontos de vista, assim como de outras personagens que atravessam suas histórias, que o autor explora a esperança de escapar para “algum lugar lá fora", onde dizem existir a liberdade.
Asim explora o poder das palavras em preservar essa esperança com uma linguagem própria dos negros, desconhecida dos brancos. Por exemplo: eles não se referem a si mesmos como escravizados, mas Sequestrados. Os captores são Ladrões. Uma forma de lembrar que, antes da escravidão, havia uma vida sem tortura e violência. Onde eles eram donos da própria vida, tinham sua própria cultura, sua própria história, suas riquezas. Até terem isso roubado dos brancos. Na frente dos Ladrões, é questão de sobrevivência agir com cautela, não se mostrando desafiador demais. Mas no escuro da noite em suas cabanas, ou quando andam pelo mato para fugir dos capitães do mato, as palavras ancestrais retornam com força.
E essas palavras guiam suas vidas desde o seu nascimento, como bem mostra Asim. Cada Sequestrado que nasce recebe, aos sussurros, as suas Sete Palavras, como algo sagrado que guiará toda a sua vida. Nem todos acreditam no poder dessas palavras, mas a fé de quem se permite sonhar contagia de alguma forma seus pensamentos. Em algum lugar lá fora explora, claro, todas as violências sofridas pelos escravizados: mães separadas de seus filhos, mulheres violentadas, pessoas torturadas. Só que o livro se concentra muito mais retratar a vida em comunidade dos Sequestrados, sua luta para fugir, para manter a cultura viva na mente daqueles que nasceram longe de casa. É nesse amor, nessa esperança, que mora toda a beleza do livro.
Aí saindo dessa belezura de Jabari Asim, passei para Day, de Michael Cunningham (4thState, li em english mesmo). Foi como mudar do vinho para a água, porque aqui temos o clássico Drama Familiar da Classe Média Branca Norte-Americana. Fazer o quê, gosto dessas histórias.
A data é 5 de abril, e conhecemos uma família que mora no Brooklyn: Isabel, a esposa; Dan, o marido; Robbie, irmão de Isabel; e os filhos Nathan (10 anos) e Violet (5). Todos vivem no mesmo apartamento, mas Robbie, chegando ali nos 40 anos, decide se mudar. Nem Isabel nem Dan querem isso, já que ambos são muito próximos de Robbie, uma relação que tem ares de triângulo amoroso (Robbie sempre teve uma quedinha por Dan). Mas Robbie é um professor de geografia insatisfeito com a vida profissional e amorosa, sente que falhou na vida ao não ter feito medicina, como sua família esperava. Para escapar um pouco dessa realidade, ele alimenta um perfil falso no Instagram de um cara que exala sucesso na vida.
Bem, essa é uma breve apresentação das personagens e do que está acontecendo neste 5 de abril. Não parece nada demais, é aquele tipo de trama que não promete ação, ele é apenas um instante da vida humana. E aqui, pra mim, está toda a graça do livro: Cunningham não narra pra gente o desenrolar de cada trama com calma e detalhes. Ele estrutura o livro em três partes, cada uma delas em um 5 de abril de um ano diferente. E assim, da iminência da mudança de Robbie em 2019, pulamos para 2020 no auge do lockdown por conta da Covid. E, depois, um salto para 2021, para o desfecho.
E qual é o escape aqui? Bem, mais uma vez, da realidade, mas da realidade da vidinha entediada. Isabel se dedica ao trabalho, tem sucesso na carreira, mas se sente uma mãe de merda. Dan é o “dono de casa" que pegou para si a manutenção da rotina, deixando seus sonhos de ser cantor de lado, e pensa constantemente em voltar a sentir o frisson dos palcos da sua juventude, onde ele era o rockeiro bonitão. Robbie se sente intruso na vida da irmã, que ele ama, mas inveja, e lamenta a solidão e seus relacionamentos fracassados. E tem os filhos lá, vendo essas tensões acontecerem sem entender direito por quê, já que têm suas próprias questões internas.
Eu gostei bastante de Day por conta da estrutura do livro, eu gosto quando o autor conta a história nas entrelinhas, quando ele mostra o que aconteceu através das consequências, e não do acontecimento em si. E tendo o ponto de vista de cada personagem, inclusive das crianças, é legal como ele trabalha como cada um percebe aquele momento de um jeito diferente. Sem falar que, né, o livro mostra bem aquela confusão mental que vivemos durante a pandemia, onde a gente não sabia o que iria acontecer. Boa história. White people problems? Sim, mas eu sou branca, né. ¯\_(ツ)_/¯
E aí vem Distância de resgate, de Samantha Schweblin (Fósforo, tradução de Joca Reiners Terron), que também fala de mães e filhos, que também tem uma doença contagiosa ameaçando as personagens, que também mostra pessoas tentando escapar, se salvar. Só que aqui a coisa vai mais na pegada do terror mesmo.
Amanda foi pro interior da Argentina com sua filha Nina, e lá conhece Carla, vizinha da casa onde se hospeda. Ela é mãe de David, um garoto que adquiriu um comportamento estranho depois de ser infectado por uma doença desconhecida.
História curtinha e super ágil, porque todo o livro é composto de diálogos entre Amanda e alguém que busca captar o exato momento em que a tragédia ocorreu. A gente não tem ideia exatamente do que aconteceu, porque esse diálogo é confuso, febril, tudo envolto em névoa. Então é aquele suspense que te deixa bem quebrando a cabeça para botar ordem no que está sendo dito.
Gostei muito de Schweblin quando li Kentukis, por isso logo li Distância de resgate quando chegou. Foi bom, me entreti, mas não senti o furor que senti com o outro livro dela. Mas tá tudo bem.
Outras dicas
O Carnaval já acabou, mas nosso episódio do Ppkansada sobre redução de danos com o Uno Vulpo segue sendo recomendado!
E falando em Carnaval, como é bom esse texto da Isabela Reis, colega de Associação e Ppk, sobre a importância dessa festa. Por mais que eu não seja de pular bloquinhos e tal, eu amo acompanhar os desfiles das escolas de samba, meu sonho é ir ver ao vivaço. E Carnaval é isso: é comunidade, é a cultura, é história, é tudo. E veja só: ainda causou um furor no mercado editorial com os enredos baseados em livros.
Opa, e ficamos por aqui. Lembrando que você pode ter sua questão respondida aqui nesta newsletter. É só mandar ela aqui no formulário do Pergunte para a vagabunda.
Para encerrar, contemplem este pombo que me fez companhia durante o almoço de hoje. Fofa.
Beijos!
interessante o recorte de “day”, com o mesmo dia em três anos diferentes. vou procurar por ele.