E aí, vagabunders?
Estão bem em vossas peles? Eu estou, se querem saber.
Hoje a news vai ser um pouquinho diferente pois nela tem… um conto. Um continho aí que escrevi esses dias. Já que to tentando ser escritoura, né? Enquanto não faço o livro, então fiquem com esse aqui.
E mais as dicas de sempre. :)
Horrível
Tudo que é horrível me excita, tudo o que é tenebroso me atrai. Eu não diria que minha personalidade tenha sido moldada através da família Adams, que introduziu o horror como entretenimento para uma geração de crianças, carregado de ironia e humor. Minha atração pelo horror não tem nada a ver com isso. Tudo veio do mais profundo desejo de mergulhar no que há de mais sórdido.
Foi assim, desde pequena, que comecei a acompanhar tudo o que havia sobre crimes, assassinatos, enfim, todas as coisas erradas que o ser humano poderia fazer, tudo o que a sociedade considera um crime, um pecado. Histórias de incesto sempre foram as minhas preferidas quando pensava em me masturbar, eu queria entender como era excitação que um filho encontrava transar com o próprio pai ou a própria mãe. Mas o que me atraía mesmo era a violência. Os assassinos. Dentro da minha cabeça, pessoas capazes de matar outras pessoas eram as mais corajosas e, por assim serem, as mais atraentes.
Principalmente os casos que envolviam torturas, o jogo de brincar com o medo da vítima, levá-la ao limite do horror. Poder e violência juntos para satisfazer o prazer do assassino, sem se deixar abater pela moral e os bons costumes que regem a sociedade. Tudo que é vivo merece sofrer.
Com 16 anos de idade comecei escrever cartas para os principais criminosos que eu encontrava nas notícias. Eu dava um jeito de descobrir onde estavam presos, ou então onde viviam depois de saírem da prisão, e tentava de qualquer maneira atrair atenção deles para mim. Eu queria ser aceita no clube deles, eu queria ser uma espectadora das próximas proezas maléficas que fariam. Quando completei 18 anos, comecei a visitar alguns desses homens na prisão. Aqueles que eu mantinha correspondência por mais tempo. Eu queria me tornar confidente, cúmplice, idealizadora conjunta de suas fantasias mais horríveis.
Quando cheguei aos 21, conheci Marcos. Preso por assassinar uma família de 5 pessoas (mãe, pai, avós e um filho de 10 anos de idade) de maneira brutal. Segundo a sua confissão, Marcos planejou com cuidado cada passo do seu crime. Durante meses observou a rotina da família, se infiltrando sub-repticiamente nas suas vidas. Para ele era fácil transitar em qualquer lugar sem ser notado. Como o personagem de "Seu rosto amanhã", sua feição era extremamente comum, daquelas que não chamam a atenção nem por ser bonito, nem por ser feio. Ele era apenas normal, mais um cidadão brasileiro levando a vida pela cidade.
Meu primeiro contato com ele foi através da cobertura incessante do Brasil Urgente sobre o tenebroso caso do assassino sádico de São Paulo. Quanto mais Datena listava as atrocidades do crime, mais eu me encantava pelo rosto inexpressivo que via na tela. Tão comum e sem compaixão alguma pela vida das pessoas.
Marcos nunca disse por que escolheu essa família específica, os Pedrosa, como vítima. Na época ele trabalhava como técnico da Claro, e por isso tinha acesso aos mais variados locais. Dos mais simples aos mais luxuosos. Foi assim que ele chegou na família Pedrosa, indo instalar a banda larga na casa nova, dentro de um condomínio de Alphaville. Para Datena, isso era um prato cheio: gritando freneticamente para a câmera, ele falava sobre como o mundo está perdido, com monstros como Marcos soltos na sociedade, sem sabermos quem será o próximo assassino e a próxima vítima. Falava de como pessoas como Marcos eram a grande falência da sociedade, sem respeito algum pela vida de famílias felizes, trabalhadoras, como os Pedrosa.
Claro que, por serem residentes da onde eram, o crime gerou comoção nacional. Quando a violência se dá contra uma família abastada, ela é muito mais impactante. As pessoas não se interessam pelos crimes dos pobres, pelas vítimas miseráveis, porque na cabeça delas todos eles são violentos por natureza. Apesar de ter essa atração obsessiva pelo horror, confesso que ainda tinha certo senso de justiça para os mais humildes. Então, para mim, Marcos se tornou um Deus: não só ameaçava a sociedade, como também ameaçava aqueles que mandavam na sociedade.
Demorou um pouco para eu receber uma resposta de Marcos à minha primeira carta. Escrevi ela em maio, me apresentando como uma fã de seu trabalho. Buscava formar um laço forte com ele desde o início, então recheei a missiva com adjetivos bajuladores. Um homem corajoso por ter cometido um crime contra pessoas vistas pela sociedade como gente de bem, gente a quem podemos nos espelhar pois representam o sucesso e a vida a que temos que almejar. Que saco essa coisa de família tradicional, de unidade que não se separa, de amor incondicional. Expliquei como toda essa noção de "família feliz" me dá enjoo, porque famílias felizes não existem. Tudo é mascarado, um grande teatro moral que quer ditar como a vida tem que ser.
Marcos, nesse contexto, era um herói. Alguém com coragem de mostrar como essa fantasia familiar pode ser facilmente derrubada. Na minha primeira carta, elogiei seus métodos de acabar com mais uma farsa da humanidade. A maneira com que ele torturou a criança em frente aos pais e avós, fazendo-os sofrer antes do seu próprio fim, para que esse momento de terror fosse a sua última memória em vida — não que eu acredite que haja algo após a morte. Mas se houvesse, essa seria a cena que passaria eternamente em frente dos seus olhos. Ele começou com a criança para gerar maior impacto, claro. Seus motivos eram a pura maldade, e não se vingar de alguém específico.
Depois ele passou aos avós. Começar pelos mais vulneráveis para chegar aos adultos, aqueles que ainda teimam em sustentar um jeito falido de viver. O mundo é feito para o terror, e não para a felicidade. Chamei-o de artista, seus atos eram uma pintura chocante que escancarou as entranhas da humanidade.
Três meses depois, recebi, finalmente, uma resposta. Seca, sem sentimentalismos. Ele agradeceu minhas palavras, mas com cautela. Esperava mais entusiasmo, mas um homem como esse não se porta como um menino apaixonado porque a colega da escola elogiou sua mochila. Ele não me falou muita coisa sobre os dias na prisão, ou sua própria visão de mundo. Nem citou os assassinatos que o colocaram nessa situação. Eu queria mais. Queria construir uma intimidade que ele não teria com nenhuma outra correspondente — elas existem, não sou a única.
Na segunda carta, procurei provocar o lado terrível de Marcos. Perguntei o que ele sentiu enquanto matava todas aquelas pessoas. Se ela pensava sobre isso na prisão. Se reviver essas imagens o deixava ansioso para um próximo crime, caso fosse acontecer. Poderia acontecer, dentro da própria prisão, então perguntei também se ele está irritado com alguém a ponto de matar lá dentro mesmo. Um guarda, talvez. Queria despertar nele a ânsia que o levou a planejar a matança de Alphaville. Na minha cabeça, essa era uma maneira de fazer ele se sentir vivo em seu isolamento.
Minha estratégia funcionou. Nas próximas cartas, ele falou cada vez mais sobre suas motivações. Ilustrou com as palavras cada sensação que passou pelo seu corpo enquanto praticava todo aquele horror. Eu estava extasiada, cada vez mais apaixonada. Tudo o que eu pudesse aprender com Marcos, eu aprenderia. Logo, comecei a visitá-lo. Não eram visitas íntimas, ele não tinha essa mamata ainda. Apenas conversávamos em um local aberto, com todas as outras visitas — quase todas mulheres.
Era desafiador acompanhar o raciocínio de alguém tão especial. Seus pensamentos corriam rápido entre diversos assuntos, todos eles ligados à vida pequena e mesquinha que somos obrigados a viver, enquanto pessoas que vivem uma farsa andam confortavelmente pela Terra. Para Marcos, não existe pessoa boa, correta, ética. Todos são uns merdas que merecem o inferno. E ele estava lá, pronto para cumprir essa tarefa.
Eu me sentia no paraíso por ter a oportunidade de falar cara a cara com ele. Eu me sentia a escolhida, a sua confidente, sua psicóloga, sua mulher. Esses encontros eram o ponto alto do meu mês, onde eu sentia que poderia ser quem eu realmente era na frente dele. Ele me validava, a existência dele validava tudo o que eu acreditava que a vida deveria ser.
Não consegui guardar para mim toda essa alegria. Eu precisava compartilhar com o mundo a mente incrível que Marcos tinha, fazer as pessoas entenderem que as coisas que ele fez são fundamentais para a nossa sociedade. A maneira mais sublime de expor nossa existência, regada de desejos que todos escondem no seu íntimo. Ele tira esse desejo do peito delas e o escancara para o mundo. Todos têm um assassino dentro de si, mas ninguém quer admitir isso. O papel de Marcos, através da minha voz, é fazer com que elas encarem essa realidade.
Criei um perfil anônimo no Twitter para relatar minhas conversas com Marcos. Não o divulguei muito, apenas em alguns grupos que discutem histórias de serial killers e as compartilham incessantemente, fingindo estarem chocadas com suas histórias. Não demorou para que umas 200 pessoas começassem a seguir por pura curiosidade mórbida. Poucos interagiam, mas eu sabia que entre os seguidores deveria existir alguém como eu. Ou que eu poderia despertar esse lado adormecido.
Logo o número de seguidores cresceu e, em poucas semanas, meus posts sobre Marcos alcançaram mais pessoas. As interações explodiram. Todo mundo comentava como eu era louca, que eu tinha algum problema mental sério para manter contato com um homem assim. Aqueles que liam bem nas entrelinhas — poucos — entendiam que o que eu estava fazendo era validar todas as atitudes de Marcos. Deixar ele falar através de mim.
As reações aos meus posts eram pura hipocrisia. Se elas chegaram naquele perfil, foi porque possuem também um impulso às maiores contravenções. Elas também se fascinam com tragédias, mas se fingem de cidadãos de bem. Na realidade, quem me xingou e desejou a minha morte — ou o meu suicídio — está se esbaldando em todo o sangue que séries, filmes, documentários, podcasts e canais no YouTube com jovenzinhas bonitas discutindo os casos mais tenebrosos enquanto faz um contorno no rosto. O que as torna diferentes de mim?
Respondi a elas: vocês são exatamente iguais a mim. O que vocês chamam de entretenimento é a vida real, e vocês estão morrendo de medo de aceitar que são movidos pelas mesmas emoções que levaram Marcos a matar. Vocês se perguntam como deve ser perfurar uma carne humana, como é pegar numa arma e, com uma boa mira, derrubar alguém no primeiro disparo. Vocês leem relatos de crimes hediondos com a mesma voracidade com que eu me comunico com Marcos. Vocês querem todos os detalhes, os mais sórdidos, para depois pagarem de bons-moços que querem justiça.
Não é fácil ter coragem para dizer tudo isso. Ninguém quer admitir que a monstruosidade mora dentro de si. Por mais que tenham me massacrado, essas pessoas não chegaram perto de abalar as minhas convicções. Ao contrário, elas reforçam ainda mais a ideia de que todos, sem exceção, irão matar caso haja a oportunidade. Irão abusar, torturar, subjugar qualquer pessoa ao seu desejo de violência. Por trás das câmeras, das paredes, dos olhos do público, todo mundo é assassino. A indignação contra as minhas palavras foi só mais um ato de violência fantasiado de comportamento ético e elogiável.
Continuo divulgando minhas conversas com Marcos. Até que as pessoas entendam e enxerguem, finalmente, que o ato maravilhoso de Marcos é o que precisamos para acordarmos diante da nossa existência. Continuo sendo massacrada, também, e devo ser a pessoa mais odiada do país neste exato momento. Mas aos poucos uma comunidade de pessoas que se identificam com Marcos se forma. Já somos 15, e em breve seremos mais. A liberdade do horror só está começando.
Para ler
Adorei essa edição do Dia Sim, Dia Não sobre os 32 anos da internet que, tal qual uma millennial 30+, está “completamente esculhambada, carente, fragilizada, empanzinada de conteúdos sem dar conta de acompanhar nem metade, ama positividade tóxica, se transformou em um criadouro de síndromes, transborda podridão e cansaço".
Outras dicas
Comecei a ler Sempre Susan: Um olhar sobre Susan Sontag, da Sigrid Nunez (tradução de Carla Fortino), que a Instante vai lançar em setembro. O livro entra em pré-venda nesta sexta lá na newsletter da editora, Só Um Instante. Mal comecei e já estou adorando a vibe. Olha só esse início:
Ando passando minhas tardes vendo o Pra Variar na Dia TV. Um programinha com o Victor de Castro, a Bielo e o Caê, que traz convidados para fofocarem e falar de outros temas legais. Virou meu programa da tarde. Todo dia, ao vivo, a partir das 16h no canal da Dia TV.
Xepa do engajamento
Essa semana uma professora mandou uma reclamação muito que justa para o Santa Reclamação de Cada Dia e eu fiz um episódio xingando o “Negócio” da educação. Ouve aí :)
E no Ppkansada a gente teve um episódio bem legal falando sobre amizades tóxicas e nossos términos de amizade.
Ah, e deixar aqui um aviso: acabou o OnlyFans. Pois é. Vazaram algumas fotos minhas em um fórum e num site, que felizmente já foram removidas, mas isso me tirou total a vontade de continuar fazendo. Pensei até que, quem sabe, coloco algumas coisas aqui na news para quem apoiar com uma graninha, mas sei lá qual o interesse nisso. Me digam vocês. :)
E é isso, gente! Espero que tenham curtido essa edição, e deixar só a lembrança de que, se você quiser e puder, pode contribuir com a sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa com o valor que você quiser para apoiar a news. O conteúdo (escrito, pelo menos, hehehe) seguirá sendo aberto. Para apoiar, é só ir aqui na inscrição e selecionar quanto você quer deixar.
Fiquem com uma foto de gostosa lendo na sacada.
Beijos e até a próxima!
Oi Taizze, gostei do conto e já que você está aberta a dicas, deixa eu me meter: eu acho a ideia de uma personagem obcecada por violência muito boa, mas no conto eu acho que ela aparece de forma muito plana. Ela usa do juízo de valor comum sobre a violência, tipo, ela sabe que é errado e sabe o que choca e o que não choca a sociedade. Aí eu fiquei pensando, e se ela não tiver esse senso de certo/errado que a maioria das pessoas tem? Se o superego dela não funcionar assim e ela demonstrar essa beleza que ela vê na violência desconstruindo a violência do Marcos? Falando dela como falamos, por exemplo, de uma obra de arte pela qual somos apaixonados? Acho que assim você daria mais complexidade a ela. Outra sugestão (totalmente descartável) que eu dou: se ao invés de ela apenas descrever as conversas dela com o Marcos, você colocar essas conversas em forma de ação? Como se eles estivessem frente a frente conversando numa espécie de delírio dessa personagem? Enfim, são apenas sugestões. No mais, keep up the good work! Beijo!
Adorei o conto! Ansiosa para receber outros!!!