sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa #136
Olá, vagabunders do meu coração!
Minha cabeça anda pululando de raiva quanto a algumas coisas que andam rolando por aí, mas como não tô apta a organizar os pensamentos agora, decidi falar das minhas últimas leituras na edição de hoje, que foram ótimas.
Lucky Jim
Vou começar com um livro divertidíssimo que é Lucky Jim, de Kingsley Amis (Tradução de Jorio Dauster, Todavia). Publicado originalmente em 1954, é uma sátira sobre a vida acadêmica na Inglaterra daquela época. Jim Dixon é um professor de História Medieval totalmente desmotivado e entediado com o trabalho e a vida em geral. Para segurar o emprego, depende da publicação de um artigo acadêmico e, além disso, de manter boas relações com o chefe do seu departamento, o professor Welch. A vida amorosa também não anda muito boa, já que os encontros com Margaret são marcados pelos seus desabafos quanto a amores fracassados e os sinais que ela manda a Dixon são confusos.
Eu tenho um carinho especial por romances acadêmicos, como A história secreta, da Donna Tartt, mas Lucy Jim é bem diferente disso. Dixon é um cara sem muitos atrativos de início, nem feio nem bonito, nem alto nem baixo, mas o que faz ele ser interessante é o humor sarcástico e seu desprezo por todo o ambiente em que vive. As aulas são chatas, os alunos são insuportáveis, os colegas da pensão onde vive são, também, desprezíveis, e ter que viver nesse ambiente marcado pela guerra de egos e afetação é como um fim da vida. Sua única alegria, então, é zoar com essa galera com uma infantilidade digna de um garotinho virgem da sexta-série — mas, no caso dele, super válido, já que lida realmente com gente chata pra caralho.
Assim Kingsley Amis te faz simpatizar muito com Dixon, apesar dele agir como um filho da puta na maior parte do tempo. E como pouca desgraça é bobagem, as circunstâncias nunca ajudam: sempre rola algum probleminha que coloca o protagonista numa situação cada vez mais absurda, como quase botar fogo no quarto em que se hospedou na casa dos Welch, não segurar o veneno e soltar uma frase ríspida para seus desafetos, beber demais e dar vexame na frente daqueles que ele deveria agradar.
O que mais me fez gostar de Lucy Jim foi esse humor sacana do protagonista, suas tiradas, seu tédio que se torna interessante conforme as coisas vão dando errado pra ele e tudo se complica ainda mais. Pô, nada como ter um ranço em comum com alguém, e o leitor pega ranço das outras personagens com facilidade. Assim fica fácil gargalhar com os feitos de Dixon e até torcer por algum final feliz pra ele. Me diverti horrores lendo.
Fantásticas (Vol. 1)
Chegaram os dois volumes de Fantásticas, antologia de contos da metade do século XIX publicada pela Ercolano em duas edições belíssimas. Com tradução de Régis Mikail e Karina Jannini, o primeiro volume tem três contos que envolvem desejos, tabus e sexualidade, tudo isso envolto num clima fantástico gostoso. Sei lá, me bateu vontade de ler algo mais “clássico", e foi uma boníssima escolha.
O volume começa com “Arria Marcella", de Theóphile Gautier, sobre três amigos que viajam juntos para Pompéia, na Itália, para visitar as ruínas da cidade destruída pelo Vesúvio no ano 79 d.C. Enquanto passeiam e se embebedam pela cidade em busca de aventuras, aquela coisa bem “jovens privilegiados tacam o terror por aí", um deles têm desejos um pouco mais complexos. Não é qualquer dama que lhe desperta o interesse, que o enlouquece de amor. Mas nos passeios entre as ruínas, ele encontra algo a admirar: marcado nas cinzas que envolveram um corpo muito tempo atrás, a silhueta de um seio chama a atenção de Octavien. Sim, o cara fica vidrado num peitinho de pedra, TEM COMO NÃO CURTIR?
Gautier vai explorando no texto esse desejo doido de Octavien fazendo-o voltar ao passado para encontrar a dona desses peitinhos maravilhosos, e é a fantasia que toma conta dele em seu passeio febril pelas ruínas de Pompéia. O que eu achei muito daora, porque eu mesma tenho certo fascínio por esse acontecimento histórico, já perdi as contas de quantos vídeos assisti no YouTube sobre os acontecimentos daquele dia, os passeios virtuais por modelos 3D que reconstruem a cidade, os documentários sobre essas pessoas eternizadas em cinzas. E o conto me divertiu demais ao trazer tudo isso com uma carga de erotismo totalmente estranha. Amei.
"De fato, nada morre, tudo existe sempre; nenhuma força pode aniquilar o que outrora existiu. Toda ação, toda palavra, toda forma, todo pensamento caído no oceano universal das coisas ali produz círculos que vão se alargando até os confins da eternidade. A figuração material desaparece apenas para os olhares vulgares, e os espectros que dela se destacam povoam o infinito. Páris continua a raptar Helena em alguma região desconhecida no espaço. A galera de Cleópatra desfralda suas velas de seda sobre o mar azul de um Cnido ideal. Algumas mentes apaixonadas e potentes puderam trazer para si séculos aparentemente decorridos, e fizeram com que personagens mortos para todos revivessem. Fausto tomou por amante a filha de Tíndaro e a conduzido até seu castelo gótico, do fundo dos abismos misteriosos do Hades. Octavien acabara de viver um dia sob o reino de Tito e ser amado por Arria Marcella, filha de Arrius Diomedes, deitada naquele momento perto dele, em cima de uma cama antiga e em uma cidade destruída para o mundo todo.”
— “Arria Marcella" (1852)
O segundo texto é “Os mortos são insaciáveis", de Leopold von Sacher-Masoch (sim, nosso querido PAI DO MASOQUISMO), que começa daquele jeito clássico das histórias fantásticas: alguém que visita um lugar distante e escuta histórias sobre uma figura misteriosa que vive nas redondezas. É assim quando o narrador encontra a família Bardossoski, composta de pai, duas filhas e seus futuros maridos. Numa reunião entre eles, os visitantes e outros conhecidos dessa aldeia, a história sobre uma estátua de uma linda mulher que existe num castelo lá perto.
Um amigo da família, apaixonado pela filha mais nova, mas que chegou atrasado para conquistar seu amor, desenrola essa lenda pro pessoal e desperta o interesse de quem? Dele mesmo, o noivo da sua então amada, que não sossega o facho e decide ir conferir com os próprios olhos a lenda dessa mulher que foi, então encantadora. Tá percebendo uma semelhança entre as tramas? Homens meio frouxos se apaixonando por estátuas de pedra que representam, para eles, uma beleza que não existe na vida real — ou na vida, em si. Parece até que tá falando de uns caras de hoje que reclamam de tudo o que existe no corpo de uma mulher (se ela fala, anda e pensa), e enxergam na morte a beleza em seu mais puro estado.
E encerrando o volume tem o conto de uma brasileira publicado em 1890, que é “Estátua de Neve", de Maria Bormann, mas que publicou sob o pseudônimo de Délia. Numa reunião de amigos na casa de um casal que é referência de amor e companheirismo, a anfitriã tenta unir sua melhor amiga, a espanhola Carla, com Ivan, um homem que sempre se mantém afastado dos interesses comuns. Surge uma amizade entre eles, mesmo com o receio inicial, e ambos travam diálogos sobre os males do amor: ela, inatingível depois de inúmeras decepções; ele, que não se admira fácil, aos poucos se encantando com ela.
É aquela história de paixão fulminante que existe apenas dentro da imaginação de Ivan, e sua vontade não é o bastante para despertar em Carmen o mesmo interesse. É isso, aí, querida: deixa o bonitão lá sofrer de amor e se manda. Os três contos me deram aquela sensação de estar numa sala reunida com pessoas em frente à lareira enquanto contam histórias sobrenaturais, não que eu tenha feito isso na vida, mas é a imagem que vem na cabeça. Divertido de ler, e sempre bom ver como a perversão sempre esteve aí, na literatura e nas nossas cabecinhas doidas.
Aos meus amigos
E só para falar de uma leitura recente que amei, mas não vou me estender muito porque tenho mais coisas a tratar sobre esse livro, terminei no fim de semana Aos meus amigos, da Maria Adelaide Amaral, que chega às livrarias em abril pela Instante. Essa é uma nova edição do livro que foi lançado em 1992 e virou série da Globo, Queridos Amigos, em 2008. A trama começa com o suicídio de Leo, que reúne seus velhos amigos no seu velório: Lena, Lúcia, Bia, Beny, Raquel, Caio, Adonis, Pedro, Pingo, Tito e Ivan, pessoas que se conheceram na escola e na universidade e tiveram atuação importante durante a ditadura, tendo vários sendo presos e torturados.
O reencontro promovido pela morte de Leo leva essas personagens a reviverem o passado, relembrarem os tempos em que tinham esperança de serem a geração responsável por fazer do Brasil um país melhor. Mas agora, entrando na meia-idade e com suas vidas bem estabelecidas, o que persevera é a melancolia dos tempos que não voltam mais — por piores que esses tempos possam ter sido.
Maria Adelaide Amaral escreve bem demais. Boa parte do livro é feito em diálogos ágeis, e aos poucos ela vai revelando as relações que existiram entre cada um: o caso entre Lena e Ivan, a paixão que Leo sempre nutriu por ela, a tentativa de reaproximação de Tito com Raquel, os embates intelectuais entre Tito, Pedro, Caio e Beny. É bem um retrato dessa geração que teve um papel importantíssimo para a democracia brasileira, mas que agora, na vida adulta, se resignam à vida conjugal e familiar. Os tempos de revolução ficaram no passado, assim como os seus ideais.
Lendo, eu fiquei fazendo vários paralelos entre a geração de Maria Adelaide e a minha, porque acho que os millenials andam passando por uma crise geracional do mesmo jeito que as personagens de Aos meus amigos — mas não, talvez, pelos mesmos motivos, só em tempos diferentes.
Ficam aí as dicas de leitura da vez. :)
Outras dicas
Vi Ficção Americana, que tem disponível no Prime Video, e me diverti horrores também. Um escritor e professor universitário tá puto com o mercado literário que só quer publicar obras de autores negros desde que se encaixem no estereótipo de vendas — história do povo negro sofrendo, geralmente. Aí ele escreve uma sátira disso tudo só pra zoar a galera, mas acaba fechando um contrato pra publicação, e enquanto isso tem problemas na família pra resolver. Olha, gostei demais, achei tudo.
Outra coisa que assisti e tô adorando é a série Constellation, na AppleTV. É sobre uma astronauta da ESA que está na ISS com um grupo de outros astronautas, mas enquanto um deles realizava um experimento estranho, um acidente ocorre e todos devem voltar pra Terra. Porém, contudo, entretanto, essa astronauta que volta por último percebe que as coisas estão diferentes de quando ela foi pra estação espacial. Pequenos detalhes da vida dela parece que mudaram, como a cor do carro da família e o fato da filha não falar mais com ela em sueco. Aí você fica: O QUE TÁ ACONTECENDO, SENHOR? Pois é, daquelas séries de dar uma volta na cabeça.
Pra quem gosta de gastar tempo vendo aleatoriedades no YouTube, aqui vai uma playlist com todos os plantões da Globo. Foda que, quando vi essa playlist, fiquei pensando que pô, faz tempo que não tem um plantãozão desses, né? Pois agora tem mais um pra adicionar, pois teve plantão da prisão dos mandantes da morte da Marielle Franco.
Bem, um dos motivos de não ter tido newsletter na semana passada é porque não estava muito no clima de escrever depois que fiquei sabendo que meu avô morreu. Mas depois escrevi sobre ele lá na Associação dos Sem Carisma, e ele tá aqui:
E é isso! Agora não tem mais Ppkansada, então quem quiser ouvir minha voz em podcast vai ter que pagar por isso. Mas são só R$10 mensais, tá? Essa semana tem o episódio de março, então apoia aí pra ouvir!
E para terminar, uma raríssima foto com todos os meus bichos.
Tchau!
e lá vou eu adicionar mais livros na minha interminável lista de coisas que eu quero ler... rs
Olá Taize, buenas. Em primeiro lugar, sinto muito pelo seu avô. Meus sentimentos sinceros. E, adorei as dicas. Hoje, depois de alguns chopp's, irei assistir "Ficção americana" e adoro filmes sobre escritoras e escritores. Esse, em particular me chamou atenção e já coloquei o "Lucky Jim" na minha lista também. Bom final de semana, bom feriado, ovos de páscoa, chocolate, vinho e tudo o que faz a vida valer a pena!
AXÉ!